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«(…) Evoquei sobretudo aquele começo de um deles em que Cagliostro,
ignorado como tal pelo leitor, viajante anónimo e nocturno, ascende pela
ladeira de uma montanha numa noite de chuva e vento, ascende apesar das vozes
que o aconselham a retroceder, que o ameaçam se continuar, até que por fim, nas
ruínas de um castelo provavelmente gótico e depois de um rito iniciático interrompido
e frustrado, o viajante e catecúmeno é nada menos que Cagliostro, o Grande
Oriente da Maçonaria. Ah!, disse ele. Aquilo era um bom tempo, era um bom
tempo, embora mais perigoso do que este. Mas eu nunca fui maçon, ou pelo menos
não o fui da espécie racionalista, mas sim da mística, e por isso é que me
passei para os rosa-cruz até conseguir fundar a minha própria seita, ou, se
preferirem, a minha própria organização. Hoje já não sou o Grande Oriente, mas
sim o Grande Copta, e enquanto tal me obedecem mais de cem mil cidadãos deste
país; tenho pactos firmados com os Templários e relações financeiras com o
Vaticano. A Casa Branca ignora a grandeza do meu poder. O presidente pode, é claro,
declarar a guerra e enviar para outros céus marines e mísseis, coisa que a mim me
está vedada; mas se eu maquinar uma revolução, levo o país à ruína em menos de
uma semana. Claro que não me interessa fazê-lo e que, na realidade, sou uma potência
conservadora; mas talvez um dia dê uma prova menos aparatosa do meu poder, se
bem que prefira dar um sinal da minha ciência, experiência de séculos transmitida
em segredo e com perigo, na qual se resumem os saberes que não convêm ao Poder,
que se opõem à Ordem e que contradizem a Verdade. A minha ciência é a única, a verdadeira
revolução.
Dizia isto como que a brincar, enquanto o meu símio interior me
sussurrava:
Vejam-me só este gajo! Que bem que ele sabe o papel, e que papel
escolheu! Gostava mesmo de saber quem ele é e donde é que vem. Pela cara parece
bizantino.
De facto, apesar dos seus ares de homem moderno, no seu rosto alongado
e oliváceo, que às vezes me faz lembrar o teu, ainda havia muito de santo
helénico, de cara traçada segundo as normas e os princípios de uma arte que inscreve
o corpo humano num sistema de círculos e quadrados em que só respeita o Áureo
Número. Daquela vez em que me levaram de visita ao mosteiro russo instalado
nas montanhas que ficam para oeste da Northway, e em que me deixaram bisbilhotar
na oficina do monge que pintava ícones, numa tábua encostada a um canto e meio
suja via-se o esboço de um rosto como o de Cagliostro. Certa noite, já não me
lembro qual, disse-nos ter nascido em Mantinea. O que me revelou, não importa
agora quando, foi exactamente isto, que é o que nos diz respeito e me aconselha
trazê-lo aqui:
Nem o passado existe nem o futuro. Tudo é presente, como bem advertiram
os teólogos quando afirmaram que toda a vida do homem e do Cosmos, isso a que
chamamos história e da qual uma boa parte está ainda por acontecer, é pura
actualidade na mente divina. Enganaram-se apenas quanto a Deus, que não existe
(Ashverus sorriu e abanou a cabeça: tinha os seus motivos para o fazer); mas a
história, mesmo sem Mente a que remeter-se, é pura actualidade, tudo está a
acontecer agora mesmo, e se nós o percebemos como passado, como presente e como
futuro, isso deve-se tanto a organizações mentais como também a estruturas verbais.
Não foi essa suposta fluência a que chamamos tempo o que determinou os verbos,
mas sim ao contrário: o tempo como experiência e como realidade é sustido pelas
palavras enquanto expressão de um modo de a mente estar organizada». In
Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino,
1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas,
Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT