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«(…) E como eu mostrasse, não sei se manifestada em gesto mais ou menos
estupefacto (ou talvez estúpido), uma certa incompreensão ou pelo menos algum
cepticismo, Cagliostro continuou:
V. deverá ter ouvido uma infinidade de vezes o tema do Livro da
História. Sem querer, querendo talvez até indicar precisamente o contrário, a
frase, esvaziada do seu conteúdo convencional, pode depois ser recheada de
verdade. Repare que num livro coexistem o princípio, o fim e os meios, e só
quando se submete a uma leitura a que chamamos regular, é que o seu conteúdo se
mostra como um antes e um depois. Mas, quem é que duvida que se pode ler de outra
maneira, o fim primeiro, a solução antes de se pôr o problema? E que se pode
avançar e retroceder e parar, e andar de novo, e todas as combinações e
experiências temporais que se desejarem? A coexistência de todos os acontecimentos
humanos permite a quem está no segredo, a quem sabe contemplar a história no
seu conjunto, um modo de leitura semelhante: desde o começo misterioso até ao
presente, que é o que fazem os historiadores; desde o presente ao futuro, que é
o que fazem os profetas, que foi o que eu fiz quando mostrei a uma rainha o
tipo da sua morte, ou o que fez João em Patmos quando nos mostrou o modo do
nosso fim, embora com tal excesso de metáforas, analogias e precauções, que se
torna difícil averiguar qualquer coisa que não seja a de que a nossa morte, a
de todos, nos chegará pelo fogo, se bem que ninguém, nem sequer eu próprio,
saiba quando, porque nessa parte do futuro a História se vê um pouco oculta
pela bruma. É o mesmo que acontece, ou parecido, quando se tenta averiguar a data
da morte pessoal: fica sempre para poente, e é tão móvel, e quanto mais uma
pessoa se torce para a ver mais ela se lhe escapa.
Então, interrompi-o, existe uma direita e uma esquerda nesse panorama? Será,
talvez, como um quadro? Exactamente. A anulação do tempo beneficia o espaço. A
história é uma espécie de paisagem com figuras, se bem que praticamente
interminável. Aquilo a que continuamos a chamar o passado fica à esquerda; em
frente, o presente, e o futuro à direita. O espaço é circular e giratório. Tal
como não se abarca o fim, escapa-nos o princípio, embora eu, por algumas
suspeitas, me incline a acreditar na nebulosa. O meu símio íntimo quase me batia
na consciência com as gargalhadas do seu regozijo. Repetia Este gajo!,
sem descanso, e chegou a distrair a minha atenção, e, o que é mais grave,
convenceu-me ao ponto de receber a revelação de Cagliostro com ironia interior,
com aparente respeito. E é preciso adormecer para ver isso?, perguntei-lhe. Hipnotismo
e coisas dessas. Talvez aquele olhar que Cagliostro me devolveu me chegasse carregado
de desdém. A Maria Antonieta não precisei de a adormecer. V. valeu-se de uma
bola de cristal. Qualquer superfície reflectora serve: um vidro da janela, a
superfície do mar quando está calmo. A vez em que aqui o nosso amigo (e indicou
Ashverus com um gesto) precisou de umas certas comprovações, valemo-nos de um
espelho. O espelho tem a vantagem, devido à moldura, de ser possível espreitar por
ele e até atirar-se dele para a corrente, ou planar sem limitações. Possível,
em que medida? Desatou a rir. V. acaba de me perguntar se lhe é possível a si.
Pois claro que sim, homem! A visão do conjunto da história é acessível a todo
aquele que for capaz de suportar realidades tão pouco toleráveis e, sobretudo,
tão pouco inteligíveis como o infinito e o absurdo. Pensei que ia explicar-me
porque é que tinha usado aquelas duas palavras, em aparência tão comprometedoras
(embora, trazidas frivolamente, não queiram dizer nada), e fiquei suspenso, à
espera; o que ele fez foi sair da sala e voltar ao fim de alguns momentos com
um espelho, não muito grande, que colocou à minha frente, em cima de uma
cadeira: parecia velado, o espelho, se bem que com um véu interior que lhe
retirasse profundidade e impedisse qualquer reflexo; eu, ao olhar para mim, não
me via; e, de repente, acendeu-se, como que por detrás do vidro, isto é, com uma
luz distante e leitosa que se derramou por uma superfície inabarcável,
pululante como um formigueiro ou uma vermineira gigantescos». In
Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino,
1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas,
Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT