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Anno
Domini MMVI
«(…)
Não me surpreende.
Existem homens com percepções extra-sensoriais muito fortes. Espera mais alguma
coisa? Pablo faz o sinal-da-cruz e se levanta, fitando sem temor os olhos
negros do homem; ou assim parece. Meu futuro a Deus pertence, assim como o seu
e o de todos. O que é meu está guardado, não se preocupe. Não me veio dar nada
que não fosse meu por direito. Ou tirar. Isso depende do ponto de vista de cada
um. Onde estão? Felipe não lhe disse onde estavam? Infelizmente, não o
encontrei com vida. Teve o atrevimento de não esperar que eu a tirasse por ele.
Bem, não se pode ganhar sempre... Vou perguntar uma segunda vez. Onde estão? Buenos
Aires, Nova York, Paris, Madrid, Varsóvia, Genebra..., há tantos locais por
esse mundo afora! Ouve-se um estampido, e o padre cai sobre os bancos, tirando
alguns do lugar e fazendo tombar outros. O homem com sotaque do leste que
víramos em Roma aproxima-se de Pablo, que tem o lado direito da barriga
ensopado de sangue, como se nota pela mão vermelha do padre que aperta a
ferida. Deus não está aqui para salvá-lo, caro señor. É melhor dizer onde
estão. Deus já me salvou. Nunca os encontrará! O homem aninha-se sobre Pablo e
começa a falar-lhe ao pé do ouvido, como um namorado fazendo confidências. Sabe,
padre, os ajudantes servem exactamente para isso: para nos ajudar nos afazeres
e a encontrar coisas. Especialmente os mais nervosos e sem experiência. O
senhor nem imagina a quantidade de informação que eles guardam. Não os
encontrei, e sei que não me dirá onde estão... Mas uma pista aqui, outra ali...,
uma carta, um bilhete, um e-mail, um retrato...
Pablo está
ferido pelo tiro e pelas palavras. Os dados estão lançados, ou as cartas do
baralho, distribuídas, mas delas não fará parte este padre, que sai de jogo bem
cedo, é pena; porém há sempre a esperança de que o homem com a serpente tatuada
no pulso saiba bem menos do que diz, acabe-se com isso, e cada um que siga a sua
vida, dependendo do ponto de vista. Estou certo de que Marius Ferris será mais
cooperativo. Eu lhe darei cumprimentos seus, diz o homem, exibindo as costas de
um retrato para o clérigo. E dispara um segundo tiro, desta vez na cabeça. Em
seguida, caminha calmamente até ao centro da nave, faz o sinal-da-cruz e sai
por uma porta lateral.
É sempre
motivo de exultação voltar à terra natal nem que seja por 19 dias ou horas,
aspirar o odor marítimo do Báltico que inunda a cidade onde Deus quis que
nascesse, como uma predicção, uma mensagem nítida da missão que lhe fora
confiada por um homem maior. Caminha pelas ruas familiares de Gdansk, o coração
económico da Polónia, o berço da solidariedade para o mundo, a voz da luta
pelos direitos dos trabalhadores e dos cidadãos. Já havia muito, sabia que uma
obra de responsabilidade o esperava, e assim foi: um telefonema no meio da
noite para a Rua Chmielna, seis anos atrás, mas poderia ter sido um telegrama,
uma palavra ou onda telepática; a semente estava dentro do seu corpo, e a
sentia. Agora, ao passar pelo pequeno apartamento onde passou a infância e o
início da idade adulta, recorda a mãe e o pai que faleceram na juventude e o
deixaram sozinho, por vontade divina, para completar o círculo de perfeição que
ele via tão admiravelmente. O telefonema não acontece por acaso, como nada
acontece, mas estava preparado para ele. É a primeira vez em seis anos que
retoma a Gdansk, que revê o rio Motlawa. O Mestre ordenara que esperasse pela
próxima fase do plano ali, e o Mestre sabe sempre o que faz. É um iluminado, um
santo que protege na terra os interesses maiores da Trindade Divina. É quase
meio-dia e percorre a rua Miesczanska em direcção à Chlebnicka, vira à direita
e depois à esquerda para a Dlugie Pobrzeze. Na Ducha, vai almoçar no
restaurante Gdanska. Nunca pisara naquele restaurante antes, mas era como se o
conhecesse desde sempre. A suuptuosidade da decoração fazia lembrar mais a sala
de jantar de um salão real do que a de um restaurante. Na zdrowie, cumprimenta
o garçom, impecavelmente trajado. Dzierí dobry, responde ele educadamente.
Havia muito não cumprimentava as pessoas na língua materna, como também não era
cumprimentado, lembrava bem. Pede a especialidade da casa, para dois, e
pergunta se tem vinho tinto». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência,
2006, ISBN 978-972-883-969-7.
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