sexta-feira, 24 de maio de 2019

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «A verdade é que muitos faziam o mesmo, mas o que queriam dizer, na realidade, era: vejam como sou humilde; votem em mim!»

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Anno Domini MMVI
«(…) Tak, responde o garçom. Sim, em polaco. E está feito o pedido do almoço. Veio tudo muito depressa e eficientemente; entenda-se por tal: ele estava bem servido. O criado afasta-se com um smacznego franco, algo que todos dizem quando pousam as travessas de comida. Fica a mesa ornada com dois pratos, uma garrafa de água e outra de vinho tinto. Como está?, ouve-se uma voz dizer por trás do homem vestido de negro sentado à mesa, mas sem ainda ter comido ou sorvido o que quer que seja. Muito bem, senhor. Levanta-se servilmente o homem. Quem o tivesse visto havia pouco não diria que é a mesma pessoa; a segurança que inspirava se transformou em subserviência pelo sujeito que apareceu e se sentou à sua frente, traduzindo o segundo prato pedido pelo outro. Veste um fato Armani acetinado, negro também, pois esse tipo de gente tem sempre predilecção pelo negro, sabe-se lá por quê. Pela forma como o outro o olha, não há dúvida: é o chefe. Fez um bom trabalho. Obrigado. É uma honra servi-lo.
Falam em italiano, um melhor que o outro, tratando-se esse outro do polaco, que fique bem claro. O Mestre saberá recompensar, como sempre, o seu empenho. Em breve, ele o convocará para que se dirija à presença dele. Fico muito grato pelo privilégio. Deve ficar mesmo. Essa honra não é dada a muitos. Ainda mais quando se trata de ficarem vivos depois de o verem. Só os mais íntimos e que o servem condignamente, como você.
O polaco baixa a cabeça como forma de reconhecimento e tira um envelope do bolso do casaco, passando-o por cima da mesa. Foi isso que encontrei em Buenos Aires. O retrato dual de que lhe falei. Graças a ele chegamos ao tal Marius Ferris que o Mestre mandou investigar. O outro examina o retrato tirado de dentro do envelope. Curioso o que esses tipos inventam, diz, sem tirar os olhos dele. De facto, o Mestre mandou-o investigar e já temos alguns dados. É a vez de o chefe passar um envelope, sem disfarçar, por cima da mesa. Tem ordem para avançar. Tudo de que precisa está aí dentro. Aproveita para lhe passar o retrato novamente. Guarde-o com você. O Grande Plano está em marcha. Cuidado com os olhos cobiçosos. Muita gente anda atrás disso. Sem falhas e sem levantar suspeitas. Até à próxima.
Sai sem mais uma palavra e sem nem sequer tocar o prato, e o que fica também não olha para trás. Pega no envelope e guarda-o no bolso interno do casaco negro. Atira-se à especialidade da casa e, depois de bem satisfeito, paga e deixa uma gorjeta gorda ao empregado. O dia pede comemoração, e quem o serve será recompensado. Dzi'kuje, agradece o serviçal, contente pela nota verde americana que o homem bem-vestido lhe depositou na pequena bandeja de prata em que levou a conta. Do jutra, disse ainda ao tranquilo indivíduo, que é o mesmo que dizer até amanhã. Na razie, diz o outro, e sai para a rua.
Lá fora, junto ao Motlawa, abre o envelope e comprova o seu conteúdo. Uma identidade espanhola com a sua fotografia, uma passagem de avião com partida de Frankfurt e destino conhecido, alguns papéis e a fotografia que trouxera de Buenos Aires. Então, é você a seguir, atesta numa entonação paternal, mas não para a pessoa na fotografia; a entoação paternal é dirigida ao ofício que o espera e que será finalizado como todos os outros: exemplarmente. Decide ir à Feira Dominicana para uma última lembrança da cidade que não voltará a ver. Tira o casaco, deixando divisar no braço esquerdo a tatuagem de uma serpente que lhe desce até ao pulso. Volta a guardar as coisas no envelope, não sem antes olhar uma última vez para o retrato que obtivera em Buenos Aires, naquela que fora a residência paroquial de padre Pablo, que poucos dias antes adoptara uma outra, permanente, debaixo da terra. Tudo é o que tem de ser, no tempo certo, nem antes, nem depois. No retrato, o rosto de Bento XVI.

Conclave
«Fiquem tranquilos, fiquem tranquilos, porque não fiz absolutamente nada para chegar aqui». In Albino Luciani à família, quando foi eleito papa

26 de Agosto de 1978
Annuncio vobis gaudium magnum. Habemus papam, proclamou o cardeal Pericle Felici, da varanda da Basílica de São Pedro, no dia vinte e seis de Agosto de 1978. Mas, para chegar ao homem apurado pelo Espírito Santo e por mais cento e onze cardeais, muita água rolou, muitas reuniões disfarçadas de almoços, muita campanha eleitoral, no verdadeiro significado da expressão, disfarçada de desafectação; como a tarde em que o cardeal Pignedoli, rodeado de outros pares do colégio cardinalício, declarou não estar habilitado para assumir o cargo para o qual o incentivavam, e que o melhor era votarem no cardeal Gantin, um negro do Benin. A verdade é que muitos faziam o mesmo, mas o que queriam dizer, na realidade, era: vejam como sou humilde; votem em mim!
Tudo isso andou ao lado de Albino Luciani, que chegou a mandar consertar o Lancia 2000 que andava com problemas de motor. Informou ao padre Diego Lorenzi, seu assistente, que queria a viatura pronta o mais tardar no dia vinte e nove, para partirem de manhã cedo para Veneza, cidade de que era o cardeal Patriarca. Mas quis o Espírito Santo e mais os cento e onze cardeais que as coisas saíssem de outra maneira, de novo as tortuosas linhas de Deus denunciando a pouca influência dos homens e colocando o cardeal Albino Luciani a rezar ajoelhado na cela número sessenta, no final das votações da manhã. Não tinham sido concludentes, mas continham surpresas impensáveis, como os trinta votos que recebera no segundo escrutínio, que o faziam apelar ao Senhor para que o dispensasse daquele fardo enorme. Não fora o que recebera mais votos, o cardeal Siri é que havia recebido, mas a diferença era de cinco votos; contudo, o terceiro, o despretensioso cardeal Pignedoli, tivera apenas quinze, seguido do brasileiro Lorscheider, com doze». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia SEmergência/JDACT