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Anno
Domini MMVI
«(…)
Tak, responde o
garçom. Sim, em polaco. E está feito o pedido do almoço. Veio tudo muito
depressa e eficientemente; entenda-se por tal: ele estava bem servido. O criado
afasta-se com um smacznego franco, algo que todos dizem quando pousam as
travessas de comida. Fica a mesa ornada com dois pratos, uma garrafa de água e
outra de vinho tinto. Como está?, ouve-se uma voz dizer por trás do homem
vestido de negro sentado à mesa, mas sem ainda ter comido ou sorvido o que quer
que seja. Muito bem, senhor. Levanta-se servilmente o homem. Quem o tivesse
visto havia pouco não diria que é a mesma pessoa; a segurança que inspirava se
transformou em subserviência pelo sujeito que apareceu e se sentou à sua
frente, traduzindo o segundo prato pedido pelo outro. Veste um fato Armani
acetinado, negro também, pois esse tipo de gente tem sempre predilecção pelo
negro, sabe-se lá por quê. Pela forma como o outro o olha, não há dúvida: é o
chefe. Fez um bom trabalho. Obrigado. É uma honra servi-lo.
Falam em
italiano, um melhor que o outro, tratando-se esse outro do polaco, que fique
bem claro. O Mestre saberá recompensar, como sempre, o seu empenho. Em breve,
ele o convocará para que se dirija à presença dele. Fico muito grato pelo
privilégio. Deve ficar mesmo. Essa honra não é dada a muitos. Ainda mais quando
se trata de ficarem vivos depois de o verem. Só os mais íntimos e que o servem
condignamente, como você.
O polaco
baixa a cabeça como forma de reconhecimento e tira um envelope do bolso do
casaco, passando-o por cima da mesa. Foi isso que encontrei em Buenos Aires. O
retrato dual de que lhe falei. Graças a ele chegamos ao tal Marius Ferris que o
Mestre mandou investigar. O outro examina o retrato tirado de dentro do
envelope. Curioso o que esses tipos inventam, diz, sem tirar os olhos dele. De
facto, o Mestre mandou-o investigar e já temos alguns dados. É a vez de o chefe
passar um envelope, sem disfarçar, por cima da mesa. Tem ordem para avançar.
Tudo de que precisa está aí dentro. Aproveita para lhe passar o retrato
novamente. Guarde-o com você. O Grande Plano está em marcha. Cuidado com os
olhos cobiçosos. Muita gente anda atrás disso. Sem falhas e sem levantar
suspeitas. Até à próxima.
Sai sem
mais uma palavra e sem nem sequer tocar o prato, e o que fica também não olha
para trás. Pega no envelope e guarda-o no bolso interno do casaco negro.
Atira-se à especialidade da casa e, depois de bem satisfeito, paga e deixa uma
gorjeta gorda ao empregado. O dia pede comemoração, e quem o serve será
recompensado. Dzi'kuje, agradece o serviçal, contente pela nota verde americana
que o homem bem-vestido lhe depositou na pequena bandeja de prata em que levou
a conta. Do jutra, disse ainda ao tranquilo indivíduo, que é o mesmo que dizer
até amanhã. Na razie, diz o outro, e sai para a rua.
Lá fora,
junto ao Motlawa, abre o envelope e comprova o seu conteúdo. Uma identidade
espanhola com a sua fotografia, uma passagem de avião com partida de Frankfurt
e destino conhecido, alguns papéis e a fotografia que trouxera de Buenos Aires.
Então, é você a seguir, atesta numa entonação paternal, mas não para a pessoa
na fotografia; a entoação paternal é dirigida ao ofício que o espera e que será
finalizado como todos os outros: exemplarmente. Decide ir à Feira Dominicana
para uma última lembrança da cidade que não voltará a ver. Tira o casaco,
deixando divisar no braço esquerdo a tatuagem de uma serpente que lhe desce até
ao pulso. Volta a guardar as coisas no envelope, não sem antes olhar uma última
vez para o retrato que obtivera em Buenos Aires, naquela que fora a residência
paroquial de padre Pablo, que poucos dias antes adoptara uma outra, permanente,
debaixo da terra. Tudo é o que tem de ser, no tempo certo, nem antes, nem
depois. No retrato, o rosto de Bento XVI.
Conclave
«Fiquem
tranquilos, fiquem tranquilos, porque não fiz absolutamente nada para chegar
aqui». In Albino Luciani à família, quando foi eleito papa
26 de Agosto de 1978
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vobis gaudium magnum. Habemus papam,
proclamou o cardeal Pericle Felici, da varanda da Basílica de São Pedro, no dia
vinte e seis de Agosto de 1978. Mas, para chegar ao homem apurado pelo Espírito
Santo e por mais cento e onze cardeais, muita água rolou, muitas reuniões
disfarçadas de almoços, muita campanha eleitoral, no verdadeiro significado da
expressão, disfarçada de desafectação; como a tarde em que o cardeal Pignedoli,
rodeado de outros pares do colégio cardinalício, declarou não estar habilitado
para assumir o cargo para o qual o incentivavam, e que o melhor era votarem no
cardeal Gantin, um negro do Benin. A verdade é que muitos faziam o mesmo, mas o
que queriam dizer, na realidade, era: vejam como sou humilde; votem em mim!
Tudo isso
andou ao lado de Albino Luciani, que chegou a mandar consertar o Lancia 2000
que andava com problemas de motor. Informou ao padre Diego Lorenzi, seu
assistente, que queria a viatura pronta o mais tardar no dia vinte e nove, para
partirem de manhã cedo para Veneza, cidade de que era o cardeal Patriarca. Mas
quis o Espírito Santo e mais os cento e onze cardeais que as coisas saíssem de
outra maneira, de novo as tortuosas linhas de Deus denunciando a pouca
influência dos homens e colocando o cardeal Albino Luciani a rezar ajoelhado na
cela número sessenta, no final das votações da manhã. Não tinham sido concludentes,
mas continham surpresas impensáveis, como os trinta votos que recebera no
segundo escrutínio, que o faziam apelar ao Senhor para que o dispensasse
daquele fardo enorme. Não fora o que recebera mais votos, o cardeal Siri é que
havia recebido, mas a diferença era de cinco votos; contudo, o terceiro, o
despretensioso cardeal Pignedoli, tivera apenas quinze, seguido do brasileiro
Lorscheider, com doze». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência,
2006, ISBN 978-972-883-969-7.
Cortesia
SEmergência/JDACT