«(…) Mandou chamar sua tia, a condessa Prisciliana, mulher de grande
experiência; fechou-se com ela e, quando quis explicar-me o combinado pedi-lhe
que o mantivesse secreto. Durante a gravidez escreveu vinte cartas a Liszt e
recebeu três: não li nenhuma delas. Nasceu a menina e Amélia teve umas febres,
que ocultou até já não haver remédio. Disse-me: obrigada, Ferdinando, e
perdoa-me, e morreu. Esqueceu-se de me avisar de que a criança deveria
chamar-se Myriam, mas eu não o havia esquecido. O meu primo, a Águia do Leste, teve
um ataque de riso quando soube do nascimento de Myriam e da morte de Amélia. A
Myriam, como presente, mandou-lhe um título de condessa, talvez para que não se
visse obrigada, quando atingisse a maioridade, a andar pelo mundo com um nome
que não fosse seu. Pois, é verdade, foi um pormenor do Águia! Os títulos do seu
império andam muito cotados. Escrevi a Franz Liszt uma carta autógrafa na qual
lhe dizia:
Meu caro senhor: há já uns meses que passou umas semanas no meu palácio
e deleitou com a sua arte a então princesa reinante, minha esposa Amélia.
Lamento ter que lhe comunicar a sua morte, assim como o nascimento da princesa
Myriam, cujo desvalimento de mãe o meu povo tenta compensar com o seu
entusiasmo. Não se esqueça de que fui seu amigo. Ferdinando Luís.
Não sei o que pensou Franz Liszt, porque rasguei, sem ler, a carta com
que me respondeu. Lamento que tenha sido, se o foi, uma carta sublime, dessas
que podem completar o retrato de um génio se algum curioso as descobre num arquivo
ou num lote de leilão. Quanto a mim, posso dizer que a pequena Myriam me parecia
tão indefesa, com a sua grande fronte prematura de músico excepcional, que me
propus criá-la como se fosse minha. Rosanna ajudou-me durante muitos anos. Se alguma
vez tive ciúmes, foi do amor que mutuamente mostravam, pelo receio de que algum
dia me excluíssem dele, quando viessem a saber, inevitavelmente, que o pai
delas é tonto. Enganei-me.
Uma vez, a Águia do Leste e eu encontrámo-nos em Marienbad: iam comigo
as princesas e desejou conhecê-las. Quando isto sucedeu, se Carlos Frederico
Guilherme pensava declarar guerra à França, ainda não o havia manifestado,
mesmo que considerasse a guerra ganha. Que maneira ele tinha, num mundo com classe,
de conduzir a sua patuda figura de janízaro misto! As minhas filhas saudaram-no
com uma reverência impecável e com um desprezo tão discreto que nem ele,
constantemente desconfiado, pôde captar, mas que me divertiu. Não assim o que
imediatamente me comunicou:
Como Rosanna será tua herdeira, vai-a já preparando para o casamento
com o nosso primo Raniero. Raniero pertence à melhor família da Silésia
oriental, está na escola militar e, quando a tua filha tiver chegado à idade de
casar, Raniero será, pelo menos, comandante. O teu grão-ducado é um dote
suficiente, mas também indispensável, de modo que também te conviria ir
pensando na abdicação como prenda de casamento.
Viu-se que, mais tarde, mudou de opinião porque não esperou, para nos
invadir, pelo casamento de Rosanna e pela minha abdicação, da qual tardiamente veio
a saber. Não deixa de ser curioso que Rosanna, muitíssimo parecida com sua mãe,
goste de música como gosta e que, pelo contrário, Myriam, que conserva a sua
ampla fronte de génio prematuro, mas que é suficientemente bonita, lhe
interessem as ciências naturais. Ainda falam de parecenças!» In
Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma
Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.
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