sexta-feira, 3 de maio de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Era igualmente jovem, mas a sua beleza vinha de dentro, como que se lhe espelhava no semblante a formosura da alma, todo o seu porte era recatado e sem artifícios de pinturas ou perfumes…»

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O Medalhão de Ouro
«(…) Tinha Hércules chegado à adolescência e seguia por um caminho, quando se lhe deparou uma bifurcação. Indeciso, sentou-se... Tal como nós..., a pensar por qual deles meteria... Tal como nós... Eis que ao seu encontro e vindas de cada um dos caminhos se aproximam duas mulheres jovens. A que avançava da esquerda vestia uma túnica tão diáfana que permitia se lhe vissem as formas extremamente bem proporcionadas do corpo, as ancas, o busto, as pernas, o rosado da carne, o carmim dos bicos dos seios, a sombra violeta do púbis... Jesus!, benzeu-se irmão Diogo. ...Os olhos, pintados, eram dois abismos de promessas e os lábios, carnudos, vermelhos, sensuais, inculcavam beijos que, ...que?..., que nem tenho nomes adjectivos, irmão Diogo, para os caracterizar. E dirigindo-se a Hércules fez-lhe ver, em palavras suaves e numa voz quente e maviosa, quanto era boa a saudável juventude dele, tão apta aos prazeres da vida, do lazer, da riqueza, da luxúria... E enlaçava-o com os seus braços roliços e quentes, perfumados, nos olhos cintilando revérberos de desejo, a boca aflorando-lhe a pele em carícias indizíveis. Hércules sentia-se extasiado, enleado, tentado, e ia a levantar-se para seguir a jovem, quando a outra lhe fez sinal que esperasse. Era igualmente jovem, mas a sua beleza vinha de dentro, como que se lhe espelhava no semblante a formosura da alma, todo o seu porte era recatado e sem artifícios de pinturas ou perfumes, sem requebros do corpo nem desafios dos olhos, isenta de sorrisos equívocos e de provocações na voz. Falou-lhe com aquela contenção grave e sisuda que é timbre dos prudentes e avisados, mostrando-lhe como eram falazes e ilusórios os prazeres do mundo e como a virtude só se alcança seguindo o duro caminho do domínio do espírito sobre a carne, dos sacrifícios e privações, da humildade, do esforço e do trabalho. Ao fim desta penosa caminhada encontrar-se-ia, então, o prémio que a divindade reserva aos justos e virtuosos. Não lhe prometia, se escolhesse segui-la, senão canseiras e renúncias, mas o prémio final a coroar merecidamente a labuta e as atribulações da vida. Qual dos caminhos escolheu Hércules? O segundo, respondo eu, enquanto desenho no pó do chão a figura da estrada que se bifurca. Ainda bem!, sossega irmão Diogo.
Pitágoras de Samos figurou na letra Ipsilon o símbolo deste mito de Hércules. A vida humana decorria como na forma dessa letra: a senda inicial e única representa a primeira idade, uma idade incerta indefinida, nem dada aos vícios nem às virtudes; depois vem o bivium, que começa na adolescência, a via da direita uma via árdua que leva à vida feliz, e a da esquerda um caminho fácil que vai dar ao labéu e à perdição. Muitas vezes os que seguiam a sua filosofia e religião assinalavam as campas dos seus mortos com lápides funerárias que representavam o bivio da letra pitagórica. Qualquer coisa como agora, quando morre alguém, lá vêm os elogios públicos, aquilo é que era um santo!... E tão bonzinho para toda a gente!... Não fazia mal a uma mosca! O Senhor o tenha no Céu!... Também essas pedras tumulares queriam dizer que o defunto sim senhor escolhera o caminho das agruras e dificuldades, fugira dos prazeres fáceis e agora fruía nos Campos Elísios o prémio da sua virtude...
Tomássemos então o caminho da direita, exclamava o meu companheiro levantando-se. Ergo-me também. Reparasse no entanto que neste caso era o da esquerda que parecia dirigir-se para Évora. Mas Diogo, supersticioso, teima em que havemos de ir pelo da direita e é por esse que metemos. Sem nenhuma oposição da minha parte. Tudo o que neste momento me afaste de Évora representa para mim uma dilação cómoda. De caminho prosseguimos a conversa: quanto mais próxima está a data da tomada de votos e de ordens, mais o meu espírito se perturba com este terrível dilema. Também eu, como Hércules, me encontro perante a encruzilhada da vida e tenho de tomar uma decisão. E não é, de nenhum modo, a escolha entre o vício e a virtude, entre o mundo e a sua renúncia, entre a carne e o espírito, entre o bem e o mal. Sei bem que não é necessário ser-se padre para se ser um perfeito cristão. A minha dúvida tem raízes mais fundas. É que não me sinto com vocação, sei-o bem. Sei também que não foi por minha escolha que desde longa data me encontro entre frades, que por eles fui educado, que sou noviço franciscano. O Senhor é testemunha de que nada tenho contra eles, os bons irmãos de São Francisco. Estou-lhes grato, pois tudo lhes devo. Aprecio o seu teor de vida, a sua bondade, a sua singeleza, a sua humildade, a sua extasiada atitude perante a obra do Criador. Se me fosse dado ter vontade própria...» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT