quinta-feira, 23 de maio de 2019

A Ilha dos Jacintos Cortados. Cartas de amor com interpolações mágicas. Gonzalo Ballester. «E quem ousa levar a sério alguém que se confesse imortal? Assim foi possível, assim ainda o é, que aquele que se chama a si mesmo Enoch»

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«(…) Não sei de ninguém que o tenha comentado, nem em privado nem em público, para achar estranho ou para se rir, e quase suspeito que pouca gente terá lido as páginas em que o conto, nas autobiográficas, precisamente, e não nas de amena invenção: pois se assim não fosse, se fossem relativamente conhecidas, como é que não ia existir um leitor suficientemente inteligente, suficientemente sensível para se deter no facto, para interrogar o protagonista, ou, se não o considerasse como tal, o narrador? Mas a verdade é que nunca me perguntaram por Ashverus, até ao ponto de me fazerem crer que a memória do seu nome se perdeu, pois não quero pensar que se interprete o meu relato como sendo fantástico, senão mesmo como invenção trocista, daquelas que não se podem receber com a desejada seriedade, mas sim com a irritação ou com a repulsa que a mentira exige. Vejo-me, pois, na necessidade de repetir, ainda que com menos palavras, que Ashverus e eu nos encontrámos num café de Nova lorque numa tarde de Estio, e que naquele momento se iniciou uma curiosa amizade que ainda mantemos, se bem que já não como outrora, convivência frequente de entrevistas e demorados colóquios, mas sim recados periódicos ou notícias indirectas que me chegam de qualquer parte do globo: Salisbúria ou Valparaíso, pois insiste no seu ofício de procurar a paz ali onde ela se altera. A sua última missiva rezava textualmente:

De Santiago tive de sair disparado, e o postal traz o carimbo de Callao.

Não esperava a menor relação de Ashverus com o livro de Claire nem com o tema de Napoleão. Ashverus não escreve história: tem vindo a fazê-la há, aproximadamente, dois mil anos; das maneiras mais peregrinas, nos lugares menos suspeitos e sempre com nomes sob os quais ninguém poderia imaginar esconder-se outra coisa. Se o menciono aqui, se me refiro a ele, é porque graças a ele conheci e lidei em Nova Iorque com pessoas, frequentei círculos, sobre os quais as polícias costumam estar mal informadas, mas que não é por isso que deixam de ter a sua importância, pelo menos para mim. É claro que Nova Iorque, conforme algumas vezes concordámos, é uma das cidades mais mal conhecidas do mundo, precisamente porque abundam as pessoas que pensam tê-la na cabeça como um mapa, e que com o resultado da sua experiência escrevem romances ou livros de sociologia. Acontece, por exemplo, que os homens verdadeiramente raros, esses que escapam a qualquer classificação, bem como às concepções racionais, excluídos pouco a pouco de outros lugares onde se vai tornando difícil dissimular-se e ir andando, têm vindo a convergir em Nova lorque, onde seriam procurados se praticassem a antropofagia ritual ou a poligamia, se negociassem descaradamente no tráfico de mulheres ou na droga; mas um inventor de religiões (suponhamos frequente), a quem inquieta? E quem ousa levar a sério alguém que se confesse imortal? Assim foi possível, assim ainda o é, que aquele que se chama a si mesmo Enoch, e assegure ser o da Bíblia, coloque diariamente a sua barraca e a sua bandeira estrelada num passeio da Rua Quarenta e Três, quase esquina com a Quinta, e depois de declarar que o Senhor o arrebatou aos Empíreos há uns quantos séculos e que lá em cima permaneceu vivo entre os santos e, a bem dizer, de reserva, revele que Vem agora à Terra para anunciar o fim do mundo, que chegará de um momento para o outro, que está, como quem diz, ao virar da esquina no século em que estamos, e a pregar, por conseguinte, o arrependimento e a penitência. Do mesmo modo, num lugar não distante do café em que nos conhecemos, Ashverus e eu, num rés-do-chão pequenito de um edifício enorme, aquele que diz chamar-se Elias, e vende livros antigos, por pouca confiança que se tenha com ele, conta a quem quiser ouvi-lo a história do carro de fogo que o levou pelos ares: pois alguém me garantiu que um e outro se encontram todos os dias numa tasca hebraica, e que falam sem fim da sua experiência no Paraíso». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
                                                                                                                                
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT