sábado, 25 de maio de 2019

Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «O que eu quero e aprecio é ter um homem perto de mim, mesmo que esse homem me não pertença, conforme o caso, que me dê atenção e me trate como uma rainha»

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«(…) Não lhe saía da cabeça o olhar elangues cente do professor, o modo como sempre lhe falou e se lhe dirigiu num tom de respeito quase idêntico ao que o próprio manifestara por el-rei Fernando, quando ele e os comensais discutiam as qualidades e os defeitos do monarca. Sentia-se impressionada com o saber e os bons costumes do homem, cuja discrição o tornava diferente dos demais. A tamanho sentimento correspondia a felicidade de vir a tê-lo como hóspede a breve prazo, na suave suspeita de que entre ambos haveria de florescer, se Deus quisesse, uma relação harmoniosa e saudável. O único temor que ainda assim a perturbava naquela hora era a hipótese de o marido, ao despertar na manhã seguinte do estado de bebedeira em que se deixou adormecer, questioná-la acerca do significado que ela atribuíra à história da terra e da estaca na discussão ao jantar. Mas se porventura ele voltasse no assunto, pensou, haveria de lhe dizer então que reflectisse melhor sobre o episódio e que o tomasse como exemplo para a vida inteira, porque depois do acontecido jamais lhe admitiria novas faltas de respeito à honra própria e à da família donde provinha. De nada, porém, terá valido a Leonor tanta preocupação: por medo ou esquecimento, João Lourenço nunca mais se referiu ao caso.
Quem se referiu a ele, isso sim, foi ela mesma em conversa com Briolanja Mendes na manhã do dia seguinte. Contou tudo. Descreveu os convidados um por um, exceptuando naturalmente o tio e o irmão que a ama já conhecia; relatou o teor das conversas que ouviu, excluindo, porém, as de natureza política ou as que envolviam a apreciação de alguns convidados a certas atitudes do rei; confidenciou, enfim, que um professor de Coimbra, que dentro de alguns dias voltaria a Pombeiro para se instalar lá em casa, tinha passado o tempo a olhar para ela num doce e sedutor enlevo.
Não é perigosa a vinda do professor para aqui, senhora?, perguntou Briolanja, desconfiada com o entusiasmo da jovem. Por que é que há-de ser perigoso?, respondeu Leonor com outra interrogação, como se não tivesse compreendido a extensão das palavras da velha ama. Pode haver problemas... Não há problemas nenhuns. E não os há por duas razões: primeira, porque sou casada e porque a fidelidade que devo ao meu esposo vem do voto de princípio que fiz no dia do meu desgraçado matrimónio; segunda, porque estou a caminho de ser mãe e, embora ninguém o saiba nem se dê por isso ainda, não me sentiria em paz comigo mesma se me per desse nos braços de outro homem. Mas eu não disse que a senhora pode vir a correr o perigo de se ocupar do homem que aí vem; o homem é que pode vir a ficar encantado com a senhora, prosseguiu Briolanja, tentando disfarçar o sentido da sua primeira observação.
Leonor ficou pensativa por alguns instantes, passeou a mão pelo rosto, e acrescentou: isso seria problema dele. O que eu quero e aprecio é ter um homem perto de mim, mesmo que esse homem me não pertença, conforme o caso, que me dê atenção e me trate como uma rainha. Briolanja Mendes sorriu com afecto, aproximou-se da dama, acariciou-lhe os cabelos e, a propósito da última expressão, confidenciou: por acaso sonhei esta noite que a senhora ia ser rainha de um rico trono... A jovem, que até aí mantivera o acostumado ar entristecido, abriu-se de repente num largo sorriso e interrompeu. Ai sim? E como era o meu rei? Um belo homem, respondeu a aia, voltando a alisar-lhe as tranças com os dedos. Um rei de bom porte e de melhores costumes, generoso e destemido. Já falaste com as estrelas por causa disso? Não, senhora, apenas tive um sonho e sobre os sonhos as estrelas nada dizem. Elas só nos sabem dar conselhos». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
                                                                                                              
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