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Não lhe saía da cabeça o olhar elangues cente do professor, o modo como sempre
lhe falou e se lhe dirigiu num tom de respeito quase idêntico ao que o próprio
manifestara por el-rei Fernando, quando ele e os comensais discutiam as
qualidades e os defeitos do monarca. Sentia-se impressionada com o saber e os
bons costumes do homem, cuja discrição o tornava diferente dos demais. A
tamanho sentimento correspondia a felicidade de vir a tê-lo como hóspede a
breve prazo, na suave suspeita de que entre ambos haveria de florescer, se Deus
quisesse, uma relação harmoniosa e saudável. O único temor que ainda assim a
perturbava naquela hora era a hipótese de o marido, ao despertar na manhã
seguinte do estado de bebedeira em que se deixou adormecer, questioná-la acerca
do significado que ela atribuíra à história da terra e da estaca na discussão
ao jantar. Mas se porventura ele voltasse no assunto, pensou, haveria de lhe
dizer então que reflectisse melhor sobre o episódio e que o tomasse como
exemplo para a vida inteira, porque depois do acontecido jamais lhe admitiria
novas faltas de respeito à honra própria e à da família donde provinha. De
nada, porém, terá valido a Leonor tanta preocupação: por medo ou esquecimento,
João Lourenço nunca mais se referiu ao caso.
Quem se referiu a ele, isso sim,
foi ela mesma em conversa com Briolanja Mendes na manhã do dia seguinte. Contou
tudo. Descreveu os convidados um por um, exceptuando naturalmente o tio e o
irmão que a ama já conhecia; relatou o teor das conversas que ouviu, excluindo,
porém, as de natureza política ou as que envolviam a apreciação de alguns
convidados a certas atitudes do rei; confidenciou, enfim, que um professor de
Coimbra, que dentro de alguns dias voltaria a Pombeiro para se instalar lá em
casa, tinha passado o tempo a olhar para ela num doce e sedutor enlevo.
Não é perigosa a vinda do
professor para aqui, senhora?, perguntou Briolanja, desconfiada com o
entusiasmo da jovem. Por que é que há-de ser perigoso?, respondeu Leonor com
outra interrogação, como se não tivesse compreendido a extensão das palavras da
velha ama. Pode haver problemas... Não há problemas nenhuns. E não os há por
duas razões: primeira, porque sou casada e porque a fidelidade que devo ao meu
esposo vem do voto de princípio que fiz no dia do meu desgraçado matrimónio;
segunda, porque estou a caminho de ser mãe e, embora ninguém o saiba nem se dê por
isso ainda, não me sentiria em paz comigo mesma se me per desse nos braços
de outro homem. Mas eu não disse que a senhora pode vir a correr o perigo de se
ocupar do homem que aí vem; o homem é que pode vir a ficar encantado com a senhora,
prosseguiu Briolanja, tentando disfarçar o sentido da sua primeira observação.
Leonor ficou pensativa por alguns
instantes, passeou a mão pelo rosto, e acrescentou: isso seria problema dele. O
que eu quero e aprecio é ter um homem perto de mim, mesmo que esse homem me não
pertença, conforme o caso, que me dê atenção e me trate como uma rainha. Briolanja
Mendes sorriu com afecto, aproximou-se da dama, acariciou-lhe os cabelos e, a
propósito da última expressão, confidenciou: por acaso sonhei esta noite que a
senhora ia ser rainha de um rico trono... A jovem, que até aí mantivera o
acostumado ar entristecido, abriu-se de repente num largo sorriso e
interrompeu. Ai sim? E como era o meu rei? Um belo homem, respondeu a aia,
voltando a alisar-lhe as tranças com os dedos. Um rei de bom porte e de
melhores costumes, generoso e destemido. Já falaste com as estrelas por causa
disso? Não, senhora, apenas tive um sonho e sobre os sonhos as estrelas nada dizem.
Elas só nos sabem dar conselhos». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina
do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
Cortesia de OdoLivro/JDACT