segunda-feira, 27 de maio de 2019

As Sombras de Leonardo da Vinci. Christian Gálvez. «E um pouco de silêncio, per favore. Estou a tentar concentrar-me. Não é fácil para alguém iletrado como eu manter a serenidade de pensamento…»

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2 de Maio de 1519
Mansão de Clos Lucé, Amboise
«(…) O que vai ser de nós?, perguntou, mais preocupado com a sua integridade do que com o resto dos acompanhantes. Não acredito que por esta altura nos vão passear pela rua de capuz com a palavra sodomita, cosida. Vão torturar-nos. E, por mais falsa que seja a acusação, qualquer indício de verdade será motivo suficiente para nos castrarem. Ou isso ou levar-nos-ão directamente para a fogueira. A voz era firme. Os olhos não acompanharam o sentido das palavras que acabava de pronunciar. Continuava suspenso das alternativas que se desvirtuavam na sua mente e se restauravam em várias oportunidades, a maioria das quais com resultado funesto. Bartolomeo trocou a preocupação por medo.
Vão torturar-nos e queimar-nos?! Por uma simples acusação anónima, sem provas?! A sua reclamação podia ouvir-se a metros de distância, mas não interessava nem aos novos inquilinos dos subterrâneos nem aos escassos Oficiais da Noite e Guardas da Moralidade dos Mosteiros. Baccino pôs-se a rezar. Estava tão certo da sua inocência que sabia que o fim só podia ser o Paraíso, mas uma prece nunca era demais. Só receio uma coisa, interrompeu Tornabuoni, tentando transmitir uma serenidade que não acompanhava os sentimentos que lhe percorriam o corpo. Se os guardas subornarem Saltarelli e este fizer declarações contra nós, considerar-se-á verdadeira a calúnia lançada sobre nós, e aí teremos graves problemas. Jacopo é um imberbe de dezassete anos, e não acredito que aceite que o apontem na rua como um cão que gosta de ser açoitado com a verga. Achas que se venderá por alguns florins?, apressou-se a indagar Bartolomeo.
Não me parece, respondeu Tornabuoni, hesitante. Baccino interrompeu a oração. Os olhos saíam-lhe das órbitas. Não dava crédito à conversa que os companheiros de cela, não amigos, entabulavam enquanto aguardavam um castigo que consistia em flagelos e sabe Deus que coisa pior. Ignorantes!, gritou, como se de repente quisesse iniciar um ritual cristão. Não percebeis? Se Judas atraiçoou Nosso Senhor por um punhado de moedas, o que não fará este jovem por quem ninguém dá nada! Maldito seja, seremos executados na praça! Meu Deus, tende piedade... Deus é surdo.
De novo, a voz do engenheiro que sulcava a pedra com um punção metálico interrompeu cortante a discussão tão inútil quanto acalorada que se travava nos escassos metros quadrados que lhes serviam de sala. Registava um tom calmo e seguro, e não só na aparência. A convicção das suas palavras e a serenidade da entoação não eram próprias de uma situação tão preocupante.
E um pouco de silêncio, per favore. Estou a tentar concentrar-me. Não é fácil para alguém iletrado como eu manter a serenidade de pensamento se só disserdes disparates. Disparates?, perguntou, ofendido, o crente Baccino. Pelo menos procuramos adivinhar o futuro em conjunto. Não tentamos agarrar avaramente o destino com as mãos e um punção ou apropriarmo-nos dele ignorando a companhia que, tão injustamente acusada como vós, nos rodeia. Apesar de não existir uma relação profunda entre ambos, nunca se haviam falado daquela maneira, tudo fora cortês e educado. Mas o medo e a incerteza pouco a pouco faziam mossa entre os mais frágeis e inseguros, como era o caso de Baccino. A boca matou mais gente do que a espada, caro Baccino, pronunciou a voz. E acrescentou: a liberdade é o maior dom da natureza. Logo que a virtude nasce, a inveja vem ao mundo para a atacar; e, lembrai-vos do que vos digo, meus amigos, mais cedo haverá corpo sem sombra do que virtude sem inveja. Vamos, meu amigo, não é a altura certa para filosofar, afirmou Bartolomeo. O que pensais fazer?
Por alguns segundos, o único som que quebrava o silêncio que se produzia na sala eram as lascas de pedra a saltar para o solo, atingidas por um incansável punção. Ninguém estava à espera do que iam ouvir. Não era uma proposta. Era uma sentença. Eu, Leonardo da Vinci, penso fugir desta prisão. Antes estar morto do que não ter liberdade. Entretanto, a cento e vinte quilómetros dali, estava prestes a surgir a encarnação do novo representante do Céu na Terra para desencadear o seu próprio Juízo Final». In Christian Gálvez, As Sombras de Leonardo da Vinci, 2014, Clube do Autor, 2018, ISBN 978-989-724-367-7.

Cortesia de CdoAutor/JDACT