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2 de Maio de 1519
Mansão de Clos Lucé, Amboise
«(…) O que vai ser de nós?,
perguntou, mais preocupado com a sua integridade do que com o resto dos
acompanhantes. Não acredito que por esta altura nos vão passear pela rua de
capuz com a palavra sodomita, cosida. Vão torturar-nos. E, por mais falsa que seja
a acusação, qualquer indício de verdade será motivo suficiente para nos castrarem.
Ou isso ou levar-nos-ão directamente para a fogueira. A voz era firme. Os olhos
não acompanharam o sentido das palavras que acabava de pronunciar. Continuava
suspenso das alternativas que se desvirtuavam na sua mente e se restauravam em
várias oportunidades, a maioria das quais com resultado funesto. Bartolomeo
trocou a preocupação por medo.
Vão torturar-nos e queimar-nos?!
Por uma simples acusação anónima, sem provas?! A sua reclamação podia ouvir-se
a metros de distância, mas não interessava nem aos novos inquilinos dos
subterrâneos nem aos escassos Oficiais da Noite e Guardas da Moralidade dos
Mosteiros. Baccino pôs-se a rezar. Estava tão certo da sua inocência que sabia
que o fim só podia ser o Paraíso, mas uma prece nunca era demais. Só receio uma
coisa, interrompeu Tornabuoni, tentando transmitir uma serenidade que não
acompanhava os sentimentos que lhe percorriam o corpo. Se os guardas subornarem
Saltarelli e este fizer declarações contra nós, considerar-se-á verdadeira a
calúnia lançada sobre nós, e aí teremos graves problemas. Jacopo é um imberbe
de dezassete anos, e não acredito que aceite que o apontem na rua como um cão
que gosta de ser açoitado com a verga. Achas que se venderá por alguns florins?,
apressou-se a indagar Bartolomeo.
Não me parece, respondeu Tornabuoni,
hesitante. Baccino interrompeu a oração. Os olhos saíam-lhe das órbitas. Não
dava crédito à conversa que os companheiros de cela, não amigos, entabulavam
enquanto aguardavam um castigo que consistia em flagelos e sabe Deus que coisa
pior. Ignorantes!, gritou, como se de repente quisesse iniciar um ritual
cristão. Não percebeis? Se Judas atraiçoou Nosso Senhor por um punhado de
moedas, o que não fará este jovem por quem ninguém dá nada! Maldito seja,
seremos executados na praça! Meu Deus, tende piedade... Deus é surdo.
De novo, a voz do engenheiro que
sulcava a pedra com um punção metálico interrompeu cortante a discussão tão
inútil quanto acalorada que se travava nos escassos metros quadrados que lhes
serviam de sala. Registava um tom calmo e seguro, e não só na aparência. A
convicção das suas palavras e a serenidade da entoação não eram próprias de uma
situação tão preocupante.
E um pouco de silêncio, per
favore. Estou a tentar concentrar-me. Não é fácil para alguém iletrado como
eu manter a serenidade de pensamento se só disserdes disparates. Disparates?,
perguntou, ofendido, o crente Baccino. Pelo menos procuramos adivinhar o futuro
em conjunto. Não tentamos agarrar avaramente o destino com as mãos e um punção
ou apropriarmo-nos dele ignorando a companhia que, tão injustamente acusada
como vós, nos rodeia. Apesar de não existir uma relação profunda entre ambos, nunca
se haviam falado daquela maneira, tudo fora cortês e educado. Mas o medo e a
incerteza pouco a pouco faziam mossa entre os mais frágeis e inseguros, como
era o caso de Baccino. A boca matou mais gente do que a espada, caro Baccino, pronunciou
a voz. E acrescentou: a liberdade é o maior dom da natureza. Logo que a virtude
nasce, a inveja vem ao mundo para a atacar; e, lembrai-vos do que vos digo,
meus amigos, mais cedo haverá corpo sem sombra do que virtude sem inveja. Vamos,
meu amigo, não é a altura certa para filosofar, afirmou Bartolomeo. O que
pensais fazer?
Por alguns segundos, o único som
que quebrava o silêncio que se produzia na sala eram as lascas de pedra a
saltar para o solo, atingidas por um incansável punção. Ninguém estava à espera
do que iam ouvir. Não era uma proposta. Era uma sentença. Eu, Leonardo da
Vinci, penso fugir desta prisão. Antes estar morto do que não ter liberdade. Entretanto,
a cento e vinte quilómetros dali, estava prestes a surgir a encarnação do novo
representante do Céu na Terra para desencadear o seu próprio Juízo Final». In
Christian Gálvez, As Sombras de Leonardo da Vinci, 2014, Clube do Autor, 2018,
ISBN 978-989-724-367-7.
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