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Anno
Domini MMVI
«(…)
Todos os dias, passa
por aquele quadro. Sabe da sua importância, mas não o porquê dela; é como a rua
onde se mora: pensamos que já nasceu assim, com aquele nome, desde o início dos
tempos. Mas não, tudo tem mão humana e algum significado histórico, religioso
ou outro qualquer. Seja como for, é hora de fechar o museu, e o que importa é
tirar o homem dali, fazer a última ronda e ir para casa. Os colegas ficarão
cuidando do local. O segurança ainda levaria meia hora até Três Cantos, onde a
mulher o esperava em casa com um cozido divino, embora ele não soubesse disso. Tem
mesmo de sair, disse com mais firmeza, mas mantendo a educação, pois o homem
não representa ameaça; pelo contrário, apenas parece estar magnetizado pelo
quadro de Velázquez, que é bonito, no seu entender, mas não lhe perguntem mais.
Olha mais atentamente para o velho, o viejo, e repara no tremor da mão
esquerda e na lágrima que desce pela parte direita do rosto. O melhor é
fazer-lhe a vontade e dizer qualquer coisa. É um quadro bonito. As Meninas,
de Velázquez. Sabe quem são As Meninas? São essas garotas que estão no
quadro.
Tolice. As
Meninas são aquelas duas ao lado da infanta Margarita, Isabel Velasco e
Agustina Sarmiento. Meninas é uma palavra portuguesa com que a família real
cognominava as aias da infanta. Ah..., vivendo e aprendendo. Aquele pintor é o
próprio autor do quadro, que aguarda que as aias convençam a infanta a posar
para a pintura. Como pode ver pelo reflexo no espelho, a parte do rei Filipe IV
e da rainha dona Mariana já está pintada. Trouxeram os anões e o cão para
convencê-la, mas ela não cedeu, e o quadro nunca chegou a ser feito. Desculpe,
mas o quadro foi feito. Está aqui à nossa frente. O quadro reflectido no
espelho, ora. Ah. Mas isso poderá ser verdade ou não; já o quadro em si é real.
O que quero dizer é que o quadro dentro do quadro nunca o foi. Bem, se está
dizendo, deve ter razão. Repare como uma simples birra de criança altera o
curso da história, sem permitir que se faça um retrato de família.
Mas
possibilitou que se fizesse um que, porventura, é sempre maior do que esse. Talvez.
O que quero dizer é que uma decisão, num determinado momento, afecta toda uma
vida, todo um percurso pessoal, todo... O homem começa a tossir e quase cai,
não fosse a prontidão reflexa do segurança, que o ampara. Deita-o no chão da
sala, à falta de lugar melhor. Tenho a boca seca, diz o velho roucamente. Vou
buscar um copo d'água. Só um momento, señor. O segurança sai correndo da sala
número três do Museo Nacional del Prado. O velho, ainda deitado, tira um papel
do bolso do casaco, uma carta amarrotada, escrita à mão, se por ele ou por
outro, não o sabemos, mas sabemos que não a tirou para ler. Pousa-a no chão ao
seu lado. Com a carta vem um retrato de Bento XVI, e logo procura por algo no
outro bolso: um pequeno embrulho de veludo preto, que começa a abrir.
Água não é
um género de primeira necessidade num museu; por essa razão, o segurança não
volta à sala onde o homem o aguarda com a presteza que desejava, mas volta, e é
isso que importa. Traz um copo d’água na mão, sobre um pires; não quer
respingar o chão. Pelo rádio, pedira a um colega para que se dirigisse ao
local, para ver o viejo, mas quando entra na sala novamente não encontra
mais ninguém a não ser o velho, na posição em que o deixara. Agacha-se e repara
prontamente que, afinal, não está como o deixara: o velho está imóvel, de olhos
arregalados, inertes, morto. É isso, o viejo está morto! Levanta-se num
rompante e quase deixa cair o pires e o copo. Pede ajuda pelo rádio e ganha
coragem para observar o homem novamente. Os olhos do cliente estão fixados no
quadro que contemplara durante horas a fio em vida e, no chão, junto ao corpo,
há uma carta amarrotada e uma seringa vazia. Não resiste a pegar a carta, que
está escrita em espanhol; depois de lê-la, levanta os olhos com a expressão
tensa de quem carrega um enorme peso nos ombros. Por Santiago! Deus nos livre e
guarde!» In
Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN
978-972-883-969-7.
Cortesia
SEmergência/JDACT