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de wikipedia e jdact
«(…) Quanto
às testemunhas arroladas pelos arguidos, a reflexão é mais difícil de fazer,
devido ao seu número e diversidade, por um lado, mas sobretudo porque implicam
frequentemente relações pessoais hoje difíceis de reconstituir. Seja como for, observa-se
um nítido predomínio de grandes figuras (quase sem excepção do sector
intelectual e, tirando Fernanda Botelho, todas masculinas), num aparente sinal
de solidariedade que não pode deixar de nos surpreender. Dominam os escritores,
com alguns nomes previsíveis, como Bernardo Santareno, Urbano Tavares
Rodrigues, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Luiz Francisco Rebelo (autor de
uma parte da badana e que integra também a antologia), José Cardoso Pires,
Alexandre O’Neill (um dos antologiados) ou Jaime Salazar Sampaio; mas há também
nomes menos esperados, como Vergílio Ferreira, João Gaspar Simões, José Régio
ou David Mourão-Ferreira (os dois últimos colaboradores do volume e David
também autor de uma parte da badana); e dois um tanto surpreendentes: Almada
Negreiros (indicado por Ary dos Santos) e António Manuel Couto Viana (arrolado
por Luiz Pacheco). Entre as testemunhas há ainda um número razoável de críticos
(José-Augusto França, Rui Mário Gonçalves, Tomás Ribas, José Palla Carmo, João
Palma-Ferreira, Serafim Ferreira), alguns pensadores (José Marinho, Orlando
Vitorino), professores (Hernâni Cidade, Vitorino Nemésio), médicos (Francisco
Barreto Alvim, Almerindo Lessa), editores (Vítor Silva Tavares, António
Palouro), um arquitecto do calibre de Conceição Silva, um compositor como Lopes
Graça ou um jurista como Fernando Abranches Ferrão. Mas há igualmente duas
figuras à partida difíceis de compreender: João Bernardo Gíria (provedor da
Misericórdia da Covilhã e simpatizante do regime, indicado por Melo Castro) e,
sobretudo, o jornalista e crítico Amândio César (arrolado por Luiz Pacheco como
forma de pressionar os principais arguidos a arranjarem-lhe um advogado que não
fosse oficioso).
Uma quarta vertente
do processo que vale a pena pôr em relevo diz respeito à peripécia jurídica a
que já aludi. A 10-V-1967, o ajudante do Procurador da República, em ofício ao
juiz corregedor presidente do 4.º Juízo Criminal de Lisboa, nota que há no
processo certas anomalias que cumpre debelar. (f. 176): na sua opinião,
um dos elementos essenciais do crime de que os réus são acusados consistiria em
expor, pôr à venda ou publicitar de qualquer forma o impresso; Ora, os
elementos recolhidos em instrução não permitem com segurança, mesmo no campo meramente
indiciário, concluir pela verificação de tal requisito que, possivelmente, se
terá dado. Conclui, portanto, que terá havido um lapso do seu antecessor e
que a pronúncia estaria viciada, dando assim por verificada a nulidade, por
insuficiência do corpo de delito. Solicita por isso a anulação de uma parte do
processado e o envio dos autos à Polícia Judiciária para a regularização e
feitura das necessárias diligências, indispensáveis ao esclarecimento da
verdade. (f. 176v). Mesmo não tendo formação jurídica, julgo poder observar que
o magistrado fez aqui o papel que caberia à defesa, a quem terá escapado um
aspecto talvez dado por adquirido.
Nove dias depois, os autos são remetidos para a subdirectoria da
Polícia Judiciária de Lisboa, que a 6 de Julho recebe um ofício da PIDE (f.
192) comunicando a apreensão de 24 exemplares da Antologia em casa de Natália Correia e 13 na
Tipografia da Sociedade Astória que se destinavam à Biblioteca Nacional. Satisfeito
aparentemente o quesito invocado pelo ajudante do Procurador da República, o
processo volta ao 4.º Juízo Criminal de Lisboa e, a 1-II-1968, é deduzida nova
acusação contra os mesmos réus (à excepção de Artur Geraldo Soares, que
entretanto tinha falecido)». In Francisco José Jesus Topa, A Sádica Nostalgia das
fogueiras do Santo Ofício: o processo judicial contra a Antologia de Poesia
Portuguesa Erótica e Satírica, Revista Historiae, Universidade do Porto, Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada,
Espólio de Natália Correia, Torre do Tombo, Tribunal de Comarca de Lisboa, 4.º
Juízo Criminal, 2015.
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