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de wikipedia e jdact
O Deus Pã não
Morreu
«(…)
O Deus Pã não
morreu,
Cada campo
que mostra
Aos
sorrisos de Apolo
Os peitos
nus de Ceres
Cedo ou
tarde vereis
Por lá
aparecer
O deus Pã,
o imortal.
Não matou
outros deuses
O triste
deus cristão.
Cristo é
um deus a mais,
Talvez um
que faltava.
Pã
continua a ciar
Os sons da
sua flauta
Aos
ouvidos de Ceres
Recumbente
nos campos.
Os deuses
são os mesmos,
Sempre
claros e calmos,
Cheios de
eternidade
E desprezo
por nós,
Trazendo o
dia e a noite
E as
colheitas douradas
Sem ser
para nos dar o dia e a noite e o trigo
Mas por
outro e divino
Propósito
casual».
Dia Suave
«De Apolo
o carro rodou para fora
Da vista.
A poeira que levantara
Ficou
enchendo de leve névoa
O
horizonte;
A flauta
calma de Pã, descendo
O seu tom
agudo no ar pausado,
Deu mais
tristezas ao moribundo
Dia suave.
Cálida e
loura, núbil e triste,
Tu,
mondadeira dos prados quentes,
Ficas
ouvindo, com os teus passos
Mais
arrastados,
A flauta
antiga do deus durando
Com o ar
que cresce para vento leve,
E sei que
pensas na deusa clara
Nada dos
mares,
E que vão
ondas lá muito adentro
Do que o
teu seio sente cansado
Enquanto a
flauta sorrindo chora
Palidamente».
Vem Sentar-te
Comigo Lídia
«Vem
sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente
fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida
passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos
as mãos.)
Depois
pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e
não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para
um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe
que os deuses.
Desenlacemos
as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer
gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale
saber passar silenciosamente
E sem
desassossegos grandes.
Sem
amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem
invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem
cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre
iria ter ao mar.
Amemo-nos
tranquilamente, pensando que podíamos,
Se
quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que
mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo
correr o rio e vendo-o.
Colhamos
flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e
que o seu perfume suavize o momento
Este
momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos
inocentes da decadência.
Ao menos,
se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a
minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque
nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos
mais do que crianças.
E se antes
do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada
terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás
suave à memória lembrando-te assim, à beira-rio,
Pagã
triste e com flores no regaço».
In
Fernando Pessoa, Obra Completa de Ricardo Reis, Tinta da China, 2016,
ISBN 978-989-671-345-4.
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