domingo, 5 de maio de 2019

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «Tatuagem? Com que desenho? Uma serpente. Quis entrar em casa? O rapaz hesita antes de responder. Está nervoso; não são todos os dias que vemos uma arma…»

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Anno Domini MMVI
«(…) A Plaza de Mayo é o símbolo das manifestações históricas do povo argentino. Ao seu redor está a Casa Rosada, sede do governo nacional, e a Catedral Metropolitana. No momento, são essa catedral que prende a nossa atenção e esse jovem que atravessa correndo as suas colunas, a toda velocidade, e irrompe pela ampla nave adentro, abruptamente. Seu suor talvez seja reflexo do calor da noite, ou talvez não, e a respiração ofegante deve-se, evidentemente, ao passo de corrida que mantém desde a residência do pároco, a quem nomearemos Pablo, nome simples, como deve ser tudo no tocante a um padre, que não quer ou não queria ser reconhecido pela denominação verdadeira. A catedral está vazia porque está fechada ao público, mas o padre se encontra próximo da escadaria do altar, ajoelhado, com as mãos juntas, a proferir suas orações, seus pedidos e confissões, como o fazem todos os crentes de todas as religiões..., ou não.
O jovem coloca uma das mãos no ombro do sacerdote, para fazê-lo saber da sua presença. Numa situação normal, retrocederia alguns passos e aguardaria pelo final da consagração paroquial ao Senhor; mas não há tempo, pelo menos assim parece, pois o jovem volta a colocar a mão no ombro de Pablo. Depois de um sinal-da-cruz, o homem se levanta e volta-se para o adolescente, que recomeça a arfar. Que foi, meu filho? Veio à minha procura? Aconteceu alguma coisa na comunidade? Não, señor padre. Um homem..., foi a sua casa... Perguntou pelo senhor. Pablo repara na transpiração do jovem. Cruz-credo, Manoel, está suando em bica! Não faz tanto calor assim. Veio correndo? Vim, señor. Coloca a mão no ombro do jovem. Vamos, venha sentar-se comigo. Acalme-se e me conte. Quem era esse homem? E o que fez para deixá-lo nesse estado? Não o conheço... Parecia europeu, mas não italiano. A expressão do pároco endurece, como se de repente se tivesse lembrado de alguma coisa, e o padre começa a transpirar como o ajudante. O que queria comigo?
Vê-lo ainda hoje. Avisei que isso não seria possível. E aí ele disse que tudo é possível aos olhos do Senhor. Mas o pior... O pior? Fez-lhe algum mal? Não, senhor, mas deu para ver que ele não tinha boas intenções. Baixou a voz. Tinha uma arma. Pablo pega um lenço para limpar o suor da testa. É perceptível a onda de ansiedade que lhe percorre o corpo, mas, ao fim de algum tempo, fecha os olhos e permanece alguns minutos nesse estado sem pronunciar palavra. Quando os abre, já não transpira, e a respiração se regulariza. Não há nada melhor que apelar à calma e aos guias para ver a luz no fundo do túnel, que nos coloca à parte de qualquer problema, por mais grave que possa ser. O que disse a ele? Que o senhor padre tinha ido ver um amigo no hospital. Mentiu, Manoel? Perdoe-me, padre Pablo, mas não sabia o que fazer. O homem tinha más intenções e uma tatuagem no braço esquerdo.
Tatuagem? Com que desenho? Uma serpente. Quis entrar em casa? O rapaz hesita antes de responder. Está nervoso; não são todos os dias que vemos uma arma, especialmente na posse de uma pessoa com a qual jamais encontramos antes e que nos dirige a palavra. Não, señor. Está bem, Manoel. Pode ir tranquilo. O jovem levanta-se menos afoito, beija a mão de Pablo e caminha até o centro da nave, onde faz o sinal-da-cruz antes de sair. Manoel... Sim, padre? Voltou a ver esse homem no caminho para cá? Não. Não. Mas eu estava tão nervoso que assim que ele foi embora vim correndo avisá-lo. Está bem, Manoel. Pode ir. Fique com Deus e confie sempre Nele.
Antes que o rapaz saísse, Pablo já estava ajoelhado, rezando novamente no mesmo lugar em que o encontramos da primeira vez. A mesma entrega e destemor. Os caminhos de Deus são intangíveis, mas, pela fé que esse homem emprega na oração, é bem certo que Ele existe, e que as linhas tortas com que tece o mundo e a história dos homens darão certo no final, sendo essa sinuosidade criada por nós, meios diferentes para atingir um fim, mas uma diversidade perfeita, porque não seria Deus capaz de criar nada defeituoso, por incrível que pareça.
Os passos que se ouvem não são do rapaz que sai, não: são de ninguém que entra, firmes e resolutos, nem depressa nem devagar. Tudo é o que tem de ser, e o padre não vai a lado nenhum. Algo toca no ombro de Pablo, mas não é uma mão, tampouco algo humano; é um cano frio. Estava à sua espera, anuncia o padre». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia SEmergência/JDACT