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«(…) Se já tinham esmorecido havia muito, as
relações com Isidra ficaram desde então definitivamente acabadas. Nem Francisco
procurou vê-la mais, nem ela de algum modo se interpôs na sua passagem. O filho
que ia nascer preocupava-o, pois conhecia bem aquela mulher a quem a cólera
faria rasar todos os crimes. Pagou espiões que a vigiassem na sua própria casa,
soube-lhe todos os pensamentos e os diálogos em detalhe com as comadres de
confiança; soube que a criança a destinava à roda, contratou cúmplices e sentinelas,
esperou, muitas noites, nos esconsos da quinta, que alguém viesse entregar-lhe
nos braços o fardo do recém-nascido. E assim aconteceu. Era um menino, que
mandou criar cheio de amparo, e a quem a própria Maria recebia mais tarde com
deferências, homem probo que muito honrava o nome paterno, e por isso ela lhe
dedicou um respeitoso afecto. Isidra foi habitar uma residência no Porto,
pertença do avô de Borba que morrera, muito destemperado de génio e blasfemando
contra os filhos varões, cujos casamentos tinham resultado estéreis. A moça viveu até à idade madura no casarão sobranceiro ao rio, e
cujas velhas salas ela franqueava às pombas. As raras damas que a visitavam
entreolhavam-se com espanto perante aquela criatura lívida, cuja arrogância
sobressaía até nos seus próprios atavios negros, sem uma garridice, sem uma jóia.
Nos damascos esfiados dos estofos, nos mármores róseos das mesas, havia
ressequidos excrementos de aves; pelas altas janelas, cujos estores caíam aos
pedaços, entrava o sol que desbotava as tapeçarias e a seda cor de palha das
paredes. Ela possuía o snobismo da rudeza, não tentou jamais demonstrar cultura
ou preferir certas elegâncias volúveis que faziam moda, e não falava melhor do
que os caseiros com quem privara desde pequena. Havia nela, porém, um gosto
inato de nobreza que a fazia distinta entre todas as mulheres. Tem virtudes de
homem, dizia o fidalgo de Lago, muito velho já, e que a admirava sem excluir
aversão por ela. Enfim, a sua opulenta trança branqueava quando Isidra casou com
um magistrado, homem balofo e sem humor, que foi nomeado pouco depois juiz do
Supremo Tribunal. Francisco Teixeira perdeu-lhe o rasto para sempre.
Ele não tinha mudado. As suas aventuras eram inumeráveis, e
o lar significava para ele um poiso cujo encanto resultava sobretudo de manter
a toda a hora as portas franqueadas sobre o mundo. Maria viveu um inferno de
desesperos mudos, e a sua reprovação manifestava-se apenas pelo silêncio,
lidava até à
exaustão mais profunda, e não comia. Quando Francisco chegava, via-lhe os olhos
queimados, os modos secos, aquele cirandar cheiro de dignidade que o vexava e
lhe produzia remorsos; então calava-se também, e no seu coração aquela atitude
ia roendo até a imaginação a transformar em ofensa e ele acabar por sobrepor-se
às suas culpas como a vítima mais lamentável. O seu egoísmo fazia-o infantil, e
das dores que ele próprio motivava restava-lhe na consciência um sabor de
injustiça por qualquer mínima represália. Assim, os primeiros anos foram muito
amargos, se bem que Maria no futuro, os recordasse com uma ternura muito viva,
e os achasse, de facto, os mais risonhos da sua vida; três filhos perderam-se,
e a criança que logo nasceu em condições de sobreviver deveu-a a Narcisa,
conselheira assídua de Maria. Come sempre antes de o teu homem chegar a casa,
disse-lhe. Se ele não tiver ceado, comes outra vez com ele; se não, podes
deitar o teu caldo na pia, que já não faz falta... Isto desagradava os seus
ingénuos pundonores de mulher, e, como Maria só sacrificava a prudência a uma
história de honra, conciliando ambas atingia uma satisfação suprema. Um ano
depois, nasceu Justina, menina afouta e que prometia ser bela; depois seguiu-se
Joaquina Augusta e ainda três rapazes, o último baptizado, por um lapso de
registo ou como fora em tempos costume, com o sobrenome da mãe. A família
enraizava-se de novo e estendia os seus ramos naquela casa da Vessada que se reedificava lentamente». In
Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água, 2017, ISBN
978-989-641-747-5.
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