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A casinha do bosque
«(…) Gibbs sentiu-se defraudado como todas as manhãs. Havia muitos anos
que desejava que o Rei respondesse ao seu chamamento e saltasse da cama
agilmente, como aqueles gentlemen que ele servira durante os anos de
aprendizagem. Mas o Rei empenhava-se em não ser um gentleman, tal como se ernpenhava
em não ser bastantes coisas. Diga-se em abono de Gibbs que a sua cara não
traduziu o desapontamento porque, se o seu pensamento nâo era muito respeitoso para
com o Rei, era-o sempre para com o seu senhor. Limitou-se a pegat nurn velho
relógio despertador, a dar-lhe corda e soltá-la muito perto da orelha real. A
campainha fez um estrépito horrível e Canuto saltou da cama. Que se passa,
Gibbs?, perguntou com voz assustada.
Bom dia, senhor. Está uma excelente manhã. Aquelas palavras bastavam
para que o Rei se situasse na realidade quotidiana. Aquilo que Gibbs
acrescentava sempre a mesma coisa, contribuia para firrnar a sua situação e dar-lhe
uma certa consistência. São oito horas em ponto, sire. Lamento ter-me visto na necessidade
de fazer uso do despertador. Está bem, Gibbs. Que horas são? Já lhe disse,
Majestade: oito em ponto. O Rei deitou uma olhadela à marrhã. O aspecto
cinzento da neblina desanimou-o. Devias deixar-me dormir até às nove, Gibbs.
Nas manhãs como esta não há ninguém nas ruas, e o meu passeio é muito
aborrecido. Por que é que nem ao menos uma vez te esqueces de me chamar?
Ficava-te muito agradecido. Gibbs atreveu-se a olhá-lo com assombro. Majestade!
Pelo torn da voz, o Rei conheceu a magnitude da censura. Sim, Gibbs, já
sei. Tu cumpres o teu dever para que eu cumpra o meu. Procurou os chinelos às
apalpadelas, e quando os encontrou pôs-se de pé. Gibbs, entretanto, acorrera
com a bandeja. O châ, Majestade. A água quente para se lavar e barbear. Como se
barbeará hoje Sua Maiestade? Com navalha ou com máquina? Canuto demorou a
decidir-se, porque aquele era um dos poucos actos verdadeiramente livres que
lhe eram permitidos, e todas as manhãs o gozava com dramática fruição, como se estivesse
a escolher entre a vida e a morte. Com navalha, disse finalmente, com o mesmo
entusiasmo com que se tivesse decidido continuar a viver. Gibbs pegou numa
navalha e assentou-a na palma da mão com movimentos de grande sabedoria, enquanto
o Rei, sentado numa cadeira, aproveitava a barba para continuar a sonhar. Mas a
água estava fria, e o frio na pele fez-lhe dar um safanão. Que água tão fria,
Gibbs! Quando terei eu uma casa de banho como deve ser? Gibbs continuou a
ensaboat a real epiderme. Os reis deste país, sire, nunca tiveram casa de
banho. É uma tradição e as tradições não se podem alterar. Além disso, o orçamento
real não dá para instalar uma casa de banho em condições, com as suas tubagens,
as suas torneiras de níquel e todas essas coisas tão brilhantes que se vêem nas
lojas do ramo e que nunca se sabe para que servem, mas que são caríssimas.
Canuto suspirou». In Gonzalo Torrente Ballester, A Bela
Adormecida Vai à Escola, 1983, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa,
1996, ISBN 972-21-1052-7.
Cortesia de Caminho/JDACT