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No entanto, embora os predicados superficiais fossem evidentes, as carências
ocultas, ou certas deficiências, também o eram, sem discussão, sem sombra de
dúvida, sobretudo quando reflectia, a esse respeito, às três da madrugada. Ele
tinha talento para as funções que exercia, faltava-lhe, porém, agressividade
económica e social. Apesar de criativo, não sabia impor-se com a autopromoção
suficiente para reclamar os louros que lhe eram devidos. Tinha excesso de
solicitude e inteligência, talvez até em detrimento próprio, para se definir
publicamente como pessoa ou no papel que desempenhava. Nem extrovertido nem
introvertido, mas ambivertido, revelava-se ao mesmo tempo intrépido e
empreendedor, indeciso e retraído. Presumia que a queda que sofrera da sua
árvore genealógica o deixara com a vaidade ferida. Barrett duvidava de que os
decanos da firma, Thayer & Turner, alguma vez o tivessem considerado como
personalidade notável, como indivíduo insubstituível. E o pior, sim, o pior de
tudo, o seu segredo íntimo, era que não acreditava no que fazia. Não acreditava
que fosse importante (além do sustento confortável que lhe proporcionava), e,
secreta ou não, essa ausência de compromisso talvez houvesse sido captada pelos
radares invisíveis dos empregadores. Era como se, ora, que inferno, como se
Henry David Thoreau tivesse, finalmente, aceite um emprego de advogado em
questões fiscais. Era exactamente isso. Assim mesmo. Chegara à conclusão, há
alguns meses, de que se achava num beco sem saída. O trabalho tornara-se tão
cansativo e rotineiro como acordar todas as manhãs, e Los Angeles era, como
alguma alma gémea certa vez definira, apenas uma maldita sequência ininterrupta
de dias bonitos. Em desespero de causa, passou até quatro sessões consecutivas
de cinquenta minutos cada uma no divã de um psicanalista, sem conseguir dissipar
a sensação de futilidade. Não estava interessado em discutir a mãe e o pai já
falecidos, nem tão-pouco esmiuçar o Id e o Ego feridos, e cancelou a quinta
hora marcada.
Depois,
da noite para o dia, como se o nevoeiro se houvesse desfeito para revelar um
pote de esperança na ponta de um arco-íris, ocorreu um pequeno milagre. E, ao
cabo de poucas semanas, surgiu uma revelação mais espantosa, um milagre ainda
maior, e o pote de esperança transformou-se em mina de ouro. O primeiro, a
esperança, viera de Abe Zelkin. A essa altura, Zelkin já era elemento conhecido
na comunidade local, com relações influentes, tendo decidido demitir-se da
União de Liberdades Civis Americanas e abrir escritório por conta própria em
Los Angeles. Havia promessa certa de constituintes, o tipo de constituintes
como Scopes e Vanzetti com que ele e Barrett outrora sonhavam, e casos que
enriqueceriam suas vidas, embora não as carteiras, oportunidades importantes e
inacabáveis de enfrentar a injustiça, a impiedade e a intolerância. Para abrir
escritório, Zelkin precisava de um sócio. E escolheu Barrett.
A
oferta para voltar a ser jovem, fazer boas obras, encher cada dia de
significado empolgara Barrett. Seria independente. Estaria vivo. Ajudaria o
próximo. Teria tudo - menos o que durante tanto tempo julgara prezar acima de
tudo: a riqueza, que também se traduz por poder. Barrett mostrou-se
interessado, muito interessado, mas ficou hesitante. Precisava de reflectir.
Não queria mais dar passos em falso e não podia enganar-se. No entanto, sim, a
ideia de Zelkin & Barrett era boa. Zelkin & Barrett, Consultores
Jurídicos, Especialistas em Idealismo, não custava tentar. Zelkin disse-lhe que
não havia pressa, porque devia ainda liquidar uma série de causas. Quando
estivessem solucionadas, perguntaria a Barrett de novo, e se Barrett aceitasse,
mandariam fazer a placa.
Este
foi o pote de esperança de Zelkin. E quatro semanas depois, como uma visão
inesperada, surgiu a mina de ouro de Osborn. Só então Barrett percebeu que
triunfara finalmente. Com surpresa, acordou das lembranças do seu passado
recente, para descobrir que virara automaticamente a esquina do Wilshire
Boulevard e entrara no San Vicente Boulevard, estando já quase em casa. Na
Barrington Avenue, dirigiu o descapotável, rumo ao Torcello (o proprietário
jamais conseguira esquecer aquela lua-de-mel na Itália), o prédio de seis
andares construído ao redor de um pátio espanhol com piscina, onde tinha
alugado um apartamento de três peças depois do primeiro ano em Los Angeles. Chegando
ao prédio, Barrett desviou o carro para a cavernosa abertura ao lado do caminho
de entrada e desceu à garagem subterrânea. Faltava ainda uma hora para o
encontro com Abe Zelkin. Dava tempo de sobra para tomar outro banho, vestir um
fato mais leve e ensaiar o que pretendia dizer a Zelkin.
Desceu
do carro, abaixou-se e tirou a pesada caixa de papelão que continha o seu
passado e, com passo rápido, encaminhou-se para o elevador. Viu-se levado
suavemente ao terceiro andar do Torcello. Cruzou o corredor, abriu a porta do
seu apartamento, guardou a caixa num canto escuro do armário de hóspedes e
depois ligou para a telefonista. As persianas da sala estavam fechadas para não
entrar sol, formando um ambiente agradável. O quarto parecia menos seu e menos
confortável do que já fora, embora tivesse de reconhecer que ficara mais
elegante. Por obra de Faye. Como tantas mulheres ricas com tempo para perder,
dedicava-se à decoração de interiores. Quando pusera os olhos pela primeira vez
naquele apartamento mobilado, estremecera. O gosto que estes senhorios têm. Que
nome deram a este estilo? San Fernando Valley primitivo? Não tardou muito, o
sofá sem graça, almofadado, do proprietário, foi substituído pela reprodução
cara de um austero Chippendale com encosto que lembrava o dorso de um camelo.
As paredes também foram revestidas de sisalt a iluminação ficou indirecta, e
uma escrivaninha de tampo corrediço dos últimos anos da era vitoriana, junto
com uma cadeira rústica francesa, de nogueira e bambu, dominavam um recanto.
Depois da primeira investida, a invasão do bom gosto continuara. Sujeitara-se a
uma mesa de café de vidro-e-aço, baixa de mais para ter qualquer espécie de
utilidade, a não ser como um objecto propício a esfolar-lhe as canelas e
terminar de acordá-lo por completo de manhã. Em data mais recente, o telefone,
de maneira totalmente inconveniente, sumira-se da vista, dissimulado por um
escrínio de madeira entalhada que a Alameda dos Decoradores do Robertson
Boulevard conseguira importar da Swiss Village em Paris. Em cima do escrínio
havia um abajur e duas frágeis figurinhas de Limoges. Sempre que ficava
sozinho, Barrett invertia a posição das estatuetas e do telefone. Tirando o
telefone do escrínio, Barrett substituiu-o pelas estatuetas, deixando-o
encostado ao braço redondo do sofá, e discou para a telefonista da portaria. É
Mike Barrett. Alguém ligou para mim?» In Irving Wallace, Os Sete
Minutos, Coleção Dois Mundos, Livros do Brasil, 1988, ISBN 978-972-380-948-0.
Cortesia
de CDMundos/LdoBrasil/JDACT