sexta-feira, 3 de maio de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Mais não dizia o papel e eu ficava perplexo. Nesse dia várias vezes fui repreendido pelo meu alheamento e só pude pensar sossegadamente à noite na cama. Que tinha eu sabido que desse resposta às minhas interrogações?»

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O Medalhão de Ouro
«(…) Não conseguira o monarca João II que fosse herdeiro do trono seu filho bastardo Jorge, duque de Coimbra, mas o novo rei, Manuel, desejando imprimir ao seu reinado o timbre do apaziguamento que o anterior não houvera, adopta e trata Jorge como se fora seu filho. Aproveitando este o bom clima existente entre si e o rei, solicita licença para executar a promessa do pai. O rei não só consente como ele próprio dá ordem para que, a suas expensas, se dê aviamento à feitura da obra, de modo que ela seja condigna de uma promessa real. Uma vez acabada e estando Manuel de lombada em peregrinação a Santiago de Compostela, ao passar pelo Porto, num luzido e solene te deum presidido pelo bispo Diogo na sé catedral, entrega à cidade, na companhia de Jorge, o precioso relicário.
Mais não dizia o papel e eu ficava perplexo. Nesse dia várias vezes fui repreendido pelo meu alheamento e só pude pensar sossegadamente à noite na cama. Que tinha eu sabido que desse resposta às minhas interrogações? Que teriam a ver comigo os factos relacionados com a queda do Império Romano do Oriente? Ou com martírio de São Pantaleão nas terras longínquas da Bitínia, no longínquo século IV? Ou a fuga dos arménios?... Nada, evidentemente. Seria ridículo. E Miragaia? E a cidade do Porto? Ou o bispo Diogo Sousa? Ou as promessas feitas durante a peste grande? Ou el-rei João II? Ou o duque de Coimbra, mestre de Santiago e de Avis? Ou Manuel?... Procurava hierarquizar as perguntas e eliminar imediatamente as mais ilógicas e insensatas. Quem me havia pendurado ao pescoço um medalhão com uma relíquia de São Pantaleão?...
Ao chegar a este ponto das minhas interrogações, parei. Talvez fosse isso! Era o mais simples, a explicação mais plausível: alguém, uma mulher talvez, talvez aquela que me dera à luz, empreendera ao ter de me deixar, sabia-se lá porquê, encomendar-me àquele santo que tão subitamente viera de longes terras dar alivio aos Portugueses em tempo de peste e sofrimento!... Mas quem podia ter acesso a uma relíquia, pequena que fosse, do santo taumaturgo, se o rei e o bispo solenemente guardaram aqueles sagrados restos em riquíssimo relicário, à vista do povo de Deus? E aquele precioso medalhão de ouro? Não era qualquer pessoa que podia encomendar uma tal jóia. Não o permitiam as posses da maioria, nem o consentiam as leis do uso dos metais preciosos. E a que critério teria obedecido a escolha daquele santo? Teria eu estado doente? Teria sido a data, tal dia e tal mês? Mas nesse caso porque não escolher, para esse mesmo dia e mês, o outro santo do calendário do martirológio? Não era verdade que São Pantaleão não figurava ainda nesse martirológio e, portanto, no missal romano?...
Não encontrando resposta para a multidão de perguntas que me acudiam ao espírito, pensava ser preciso saber se dentro do medalhão havia algum sinal esclarecedor. Era urgente abri-lo e, a partir de então, não descansei enquanto o não consegui. Um dia, de tanto o roçar, esfregar, limar com todo o caco de vidro ou pedra mais lascada ou acerada que encontrava, o pingo de chumbo que impedia o fecho cedeu e eu pude finalmente abrir aquele cofrezinho. Dentro havia um pedacinho de tecido desbotado e quase a desfazer-se. Retirei-o com cuidado. No fundo da pequena caixa estava gravado um enigmático desenho: um pelicano com uma estrela de cinco pontas no peito. No verso da tampa, em bem visível incisão, pude ler o seguinte: XXVIJ . IUL LHO. M.D.XXVJ.

A letra pitagórica
...bivium autem Y litterae a iuventute incipere ... (porém a bifurcação da letra Y começava com a juventude ...
Vê tu, irmão Diogo,digo eu, como a minha vida se assemelha no presente momento a esta encruzilhada de caminhos! Trazemos os pés macerados das longas caminhadas e a garganta seca do pó das sendas de terra batida e do sol violento, a pino. Recorta-se já na linha do horizonte o perfil de Évora, aonde contamos chegar a meio da tarde, a horas de vésperas. Vimos de longe, no nosso tirocínio de noviços. Há mais de um mês andamos calcorreando toda a região. Seguimos pelo trilho que corre a par com o aqueduto em obras de reconstituição. O sábio André Resende descobrira os vestígios do antigo aqueduto romano de Sertório e el-rei João III convenceu-se da bondade de tal empreendimento. Súbito bifurca-se o caminho e, hesitantes, paramos a perscrutar o rumo. A encruzilhada da vida? Como assim?, pergunta o meu companheiro. É ele o coração mais bondoso e temente a Deus que eu jamais vi, mas a cabeça um tanto dura e não dada à leitura dos livros. A horta ou a cozinha, depois dos deveres da oração na capela, são o seu lugar certo, nunca a biblioteca. Sentamo-nos à sombra de uma azinheira, numa grossa raíz que emerge coleante da terra. Ali estavam dois caminhos diante de nós: um virava à esquerda, o outro à direita, e era forçoso que tomássemos por um deles. Estranho dilema se patenteava ao caminheiro se não queria perder a tramontana. Isto para mim era simbólico. Não sabia que fazer. Conhecia Diogo o mito de Hércules e a encruzilhada? Não». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT