quarta-feira, 8 de maio de 2019

Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Que canto há-de cantar o que perdura? A sombra, o sonho, o labirinto, o caos a vertigem de ser, a asa, o grito»

Cortesia de wikipedia e jdact

Do Desejo (1992)
[…]
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: porque haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

Pulsas como se fossem de carne as borboletas.
E o que vem a ser isso?, perguntas.
Digo que assim há-de começar o meu poema.
Então te queixas que nunca estou contigo
Que de improviso lanço versos ao ar
Ou falo de pinheiros escoceses, aqueles
Que apetecia a Talleyrand cuidar.
Ou ainda quando grito ou desfaleço
Advinhas sorrisos, códigos, conluios
Dizes que os devo ter nos meus avessos.
Pois pode ser.
Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo.
Pensá-LO é gozo. Então não sabes? Incorpóreo é o desejo».


Da Noite
«Vi as éguas da noite galopando entre as vinhas
E buscando meus sonhos. Eram soberbas, altas.
Algumas tinham manchas azuladas
E o dorso reluzia igual à noite
E as manhãs morriam
Debaixo de suas patas encarnadas.

Vi-as sorvendo as uvas que pendiam
E os beiços eram negros e orvalhados.
Uníssonas, resfolegavam.

Vi as éguas da noite entre os escombros
Da paisagem que fui. Vi sombras, elfos e ciladas.
Laços de pedra e palha entre as alfombras
E vasto, um poço engolindo meu nome e meu retrato.

Vi-as tumultuadas. Intensas.
E numa delas, insone, me vi.

Que canto há-de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.
Que mitos, meu amor, entre os lençóis:
O que tu pensas gozo é tão finito
E o que pensas amor é muito mais.
Como cobrir-te de pássaros e plumas
E ao mesmo tempo te dizer adeus
Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há-de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT