Cortesia
de wikipedia e jdact
Canção
das Mulheres
«(…) Que quando sem querer eu digo uma coisa
bem inadequada diante de mais pessoas, o outro não me exponha nem me ridicularize.
Que quando me levanto de madrugada e ando pela casa, o outro não venha logo
atrás de mim reclamando: mas que chateação essa sua mania, volta p’ra cama! Que
se eu peço uma segunda bebida no restaurante o outro não comente logo: caramba,
mais um? Que se eu eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a
compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire. Que o outro, filho,
amigo, amante, marido, não me considere sempre disponível, sempre
necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada
disso. Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não
sou, nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e
forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa, uma mulher.
Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma
permanente reinvenção de nós mesmos, para não morrermos soterrados na poeira da
banalidade embora pareça que ainda estamos vivos. Mas compreendi, num lampejo:
então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem
demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres,
mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida
como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole
bebido. Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo. Apalpar,
no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos,
sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero-me tornar ou já fui.
Muita inquietação por baixo das águas do quotidiano. Mais cómodo seria ficar
com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: parar p’ra
pensar, nem pensar! O problema é que quando menos se espera ele chega, o
sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping,
no trânsito, na frente da televisão ou do computador. Simplesmente escovando os
dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afecto, do desafecto, do rancor, da
lamúria, da hesitação e da resignação. Sem ter programado, a gente pára p’ra
pensar. Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um
corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão-se abrir
para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas.
Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as
máscaras e reavaliar: reavaliar-se.
Pensar pede audácia, pois reflectir
é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto. Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distracções, corremos de um lado a outro achando que somos grandes
cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e
analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E
com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade,
quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de peluche e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a
vida. Mas pensar não é apenas a
ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e
olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.
Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso
pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os
desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo». In Lya Luft, Pensar é Transgredir, 2004,
Rio de Janeiro, Editora Record, 2009, 2011, ISBN 978-850-109-376-9.
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