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«(…) Os velhos princípios, Diego, vão perdendo vigência, os tempos
mudam e as pessoas pensam de maneira diferente. Não tenho nada contra o nu em
privado, sobretudo às escuras, mas levá-lo para a rua é como tirar o sal à
comida. Não sei que vai ser de nós. Ao que se diz por aí, e já há algum tempo,
abundam os cabr… complacentes; e que acontecerá se a coisa alastra? É o que eu
te digo, Diego. Que vai ser de nós? De ti e de mim, por exemplo. No que a mim
me toca, Excelência, resta-me pouco tempo de vida, e, desde que haja vinho... Bebeu
o que restava no copo. O inquisidor-mor fechou os olhos e recordou os velhos
tempos de Roma. A ave passou roçando os vidros da janela e escondeu-se no alto
cipreste que ocupava o centro do pátio quadrangular.
Primeiro foi um Te Deum, a quatro vozes mistas, com repetida intervenção
do órgão, que umas vezes ficava por baixo, como quem serve de suporte às
piruetas melódicas, e, outras, as perseguia na sua complicada ascensão:
laudamus, laudamus, laudamus, até chocar e se reflectir nas altas abóbadas;
outras, por fim, excluía-as da corrente sonora, e era o único a subir e a
encher o espaço com o resfolegar da sua abundante tubagem; uma música de muito
mérito, trazida de Roma, concebida para a imensidão do Vaticano, que naquela
capela de mediana dimensão ficava um pouco grande: de tal modo que às vezes
vibravam as paredes e estremeciam as colunas. Depois, a asfixia do incenso e do
calor, de tal modo que alguém desmaiou e foi preciso levá-lo para fora e
socorrê-lo com aguardente e ar fresco: era um mercedário seco, especialista na
questão De auxilus, que não tinha nada a ver com a ordem do dia, mas que
não se podia deixar de fora de uma consulta geral como aquela. Quando terminou
o Te Deum, formou-se no claustro a procissão; duas filas de hábitos variados e
o inquisidor-mor atrás: muito teso, embora um pouco distraído, indiferente aos
pajens que lhe seguravam a cauda. Cantavam o Veni Creator, segundo o cantochão,
que lhes era mais acessível do que aquelas polifonias romanas, ainda que o
cantassem com vozes frouxas e bastante ásperas. Não saía muito bem, mas tanto
fazia. Nem todos os da procissão entraram, só os que tinham assento no Supremo,
quer como membros titulares quer como teólogos convidados; ou seja,
consultores, e entre estes figurava um jesuíta português, o padre Almeida,
bastante novo ainda, mas de rosto queimado pelos sóis brasileiros. O padre
Almeida estava de passagem por Madrid: tinham-no destinado a capelão secreto de
uma casa de Inglaterra, porque o outro capelão tinha sido justiçado, o que era
o mesmo que admitir que não restava muito tempo de vida ao padre Almeida; mas
não parecia acabrunhado nem entristecido, nem tão-pouco entusiasmado com o seu
futuro martírio: comportava-se com naturalidade, muito mais do que os seus
companheiros, apesar da reputação de teólogo sábio que o seu reitor proclamava
na carta de apresentação para o inquisidor-mor com que justificava a sua
presença. O padre Almeida chocava um pouco entre os restantes clérigos, porque
usava por cima da sotaina um colarinho à francesa, e porque, ao desabotoá-la por
causa do calor, se lhe tinham visto meias pretas e calção. Mas, como
estrangeiro, não lho levavam a mal». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del
Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não
demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da Caminho/JDACT