quarta-feira, 8 de maio de 2019

Bala Santa. Luís Miguel Rocha. «O homem que observa a cidade à luz da manhã, debruçado sobre a janela, está muito preocupado. Aterrou em Ben Gurion, em Telavive, a meio da tarde do dia anterior e logo se dirigiu ao seu objectivo, antes mesmo de ir ao hotel»

Cortesia de wikipedia e jdact

Wojtyla. 13 de Maio de 1981
«(…) Era o momento, se o papa passasse dali, não conseguiria concretizar a encomenda. Escapaste uma vez, pensa a lembrar o passado recente. Hoje és meu. Esfria a mente o mais possível e tira a arma do bolso. O gatilho é apertado uma, duas, três, quatro vezes, cinco, seis vezes, até que foi impedido de continuar pelos corajosos populares que o circundavam. Desarmaram-no num ápice aplicando força bruta e muita sorte teve em não ser linchado ali mesmo. As forças de segurança acercaram-se dele e detiveram-no, enquanto o carro pontifício acelerava a toda a velocidade, com o papa ferido amparado pelos assistentes e seguranças, em direcção aos muros protectores do Estado da Santa Sé. Ao revistarem o jovem de 23 anos de nome Mehmet, encontraram um bilhete com uma frase escrita em turco. Mais tarde, alguém traduziria os dizeres como: mato o Papa como forma de protesto contra o imperialismo da União Soviética e dos Estados Unidos da América e contra o genocídio que está a ser levado a cabo em El Salvador e no Afeganistão.
Algemado e arrastado pelas forças policiais sem qualquer respeito, pagante dos seus próprios agravos mentais, Mehmet gritava a viva voz na sua língua materna, facto que com certeza contribuiu para que as pessoas não atentassem contra ele, antes se limitassem a olhá-lo incrédulos, desgostosos, impotentes e com o coração cheio de mágoa e preocupação pelo Santo Padre. A execução da encomenda resultou num detido, o pobre e nada arrependido Mehmet, e três feridos. Dois deles ligeiros, espectadores tranquilos sem culpa nenhuma das ideias votivas do turco, assim como a terceira delas, o próprio papa, recebeu quatro balas e cujo corpo não foi feito para receber nenhuma. Abdómen, intestino, braço e mão do lado esquerdo, marcas suficientes para abalar uma vida inteira. Não tenho nenhum respeito pela vida humana, era o que ele gritava, sorrindo satisfeito pela tarefa cumprida. Eram cinco e um quarto da tarde. Sessenta e quatro anos antes, no mesmo dia e hora, a dois mil quilómetros de Roma, a Virgem aparecia pela primeira vez aos três pastorinhos da Cova da Iria, em Portugal.

Jerusalém
A vista sobre a cidade santa é assombrosa a partir do sétimo andar do Hotel Rei David, sito na rua com o mesmo nome. Vê-se a abóbada da Igreja do Santo Sepulcro no Bairro Cristão e Arménio, onde se crê que esteve sepultado o próprio Cristo, há mais de dois mil anos, o mesmo que ressuscitou ao terceiro dia. Sobressai nos céus a dourada Cúpula da Rocha de Haram esh-Sharif, no bairro muçulmano, que protege das intempéries a rocha sagrada onde, supõe-se, Deus pediu a Abraão que sacrificasse Isaac, seu filho. Um pouco mais à direita descortina-se a cúpula mais pequena da mesquita de El-Aqsa, na qual hoje ao meio-dia irão reunir-se inúmeros fiéis, visto que é sexta-feira. E vê-se ainda o bairro judaico, mais ao fundo, com o arco suspenso da antiga Sinagoga de Hurva, único elemento que restou do imenso edifício depois das batalhas de 1948 que opuseram judeus a árabes.
O homem que observa a cidade à luz da manhã, debruçado sobre a janela, está muito preocupado. Aterrou em Ben Gurion, em Telavive, a meio da tarde do dia anterior e logo se dirigiu ao seu objectivo, antes mesmo de ir ao hotel. Entrou na cidade antiga pela movimentada Porta de Damasco, anexa à grande muralha que envolve a parte secular, mandada erguer por Solimão, o Magnífico, e seguiu em frente pela El-wad acompanhando a confluência da multidão. Na mão levava uma mala preta de executivo. Mais adiante, virou à direita, entrando na Via Sacra, contrariando o fluxo de turistas que cumpriam a terceira e quarta estações da cruz, respectivamente aquela onde Jesus, carregando-a sobre as costas, caiu e aquela na qual viu a mãe. Uma homenagem ao Filho de Deus que morreu para salvar a humanidade de si própria, segundo reza a lenda. Os turistas ocidentais deixavam-se enlevar pelo misticismo, olhando em redor, absorvendo a energia, recordando a história imposta aos seus ouvidos desde o nascimento e comprovando-a in loco, numa escala bem mais pequena do que a que tinham imaginado. Foi essa a sensação que ele teve aquando da sua primeira visita à cidade, há muitos anos. As ruas estreitas, as casas pequenas, contrastam com a magnificência que se exige quando se menciona Cristo. É a realidade de tudo o que foi ou pode ter sido, sem que se tire a importância devida aos acontecimentos históricos importantes que o local presenciou ou se subestime a beleza pictórica do lugar. Simplesmente quer evidenciar-se a humildade e a fé, elementos comuns aos três grandes profetas que deram origem às três grandes religiões monoteístas, sem desprimor para as outras. A simplicidade é patente por todo o lado, muito mais do que em qualquer outro lugar santo, ainda que filial deste». In Luís Miguel Rocha, Bala Santa, Cavalo de Ferro Editores, Paralelo 40, Lisboa, 2007, ISBN 978-989-813-400-4.

Cortesia de CFerro/JDACT