«(…) Pois então tentai ir ao encontro
dela e dizei-lhe que venha com todos vós à próxima reunião, na santa paz de
Deus, pediu o eclesiástico com um sorriso aparentemente benigno. Não quero que
por minha culpa ela se sinta mais estrangeira em Roma do que já é. Tentai-a;
tentai convencê-la a vir na vossa santificada companhia. E se ela não quiser
vir?, perguntou, intrigado, o tabelião. Se Deus quiser, há-de querer, insistiu.
Convencei-a vir com doces palavras, porque ela terá aqui o nosso apoio; e eu próprio,
humilde servo de Nosso Senhor Jesus Cristo cá na Terra, saberei dar-lhe todo o
meu conforto. Com ar de inexcedível bondade mas de alguma desconfiança, o
tabelião menenou várias vezes a cabeça em sinal de assentimento, e proclamou em
tom definitivo: pois se assim é, que Deus vos ouça. Ele já está a ouvir-nos,
garantiu o clérigo, impúdico, cínico, insuportavelmente calmo.
Decorrida uma semana, numa tarde
embaciada de intenso nevoeiro, Raquel Aboab deslocou-se finalmente ao castelo
de Sant’Angelo na companhia dos amigos portugueses. Ao princípio ainda se
recusou a voltar ao grupo de onde fora expulsa pelo clérigo, mas depois de
muita insistência por parte do tabelião, na presença da própria madre abadessa
das Seculares Reparadoras, a jovem acabaria por ceder à proposta do eclesiasta por
interposta pessoa, na convicção plena de que se lhe faltasse o apoio divino
haveria seguramente de contar com a ajuda humana. Quer a abadessa, quer os
portugueses e os romanos estariam sempre a seu lado e nem a madre nem os outros
a deixariam cair como vítima da desgraça ou da insídia. Disso tinha ela a
certeza. Ou, pelo menos, julgava tê-la. De modo que foi com um certo alívio e
algum sentimento de segurança que Raquel reintegrou o grupo e, acompanhada por
todos, se dirigiu naquela tarde ao castelo de Sant’Angelo para assistir, como
dantes acontecia, ao trabalho de organização das festas. Bem-vinda sejais de
novo a esta pobre mas santificada casa, mulher de Deus!, clamou o bispo, logo
que viu a jovem a entrar na sala. Obrigada, senhor, respondeu ela, titubeante,
sem olhar de frente para ele.
Francesco Petrini tinha uma
figura medonha. Era um homem de estatura média, de gestos quase sempre rudes e
a voz agreste, o pescoço grosso como um tronco, o rosto coberto de pústulas, as
sobrancelhas arqueadas e muito peludas, e os lábios tão finos que,
entreabertos, mal escondiam a falta dos dentes incisivos. Além disso, fedia a
igreja. Chamei-vos porque não quero que vos sintais mais estrangeira do que já
sois nesta cidade santa, prosseguiu o eclesiasta num registo de voz invulgarmente
manso. Julgo que a vossa família está aqui toda. Com o dedo e um gesto de cabeça
apontou na direcção dos portugueses. E por isso não quero que a bela jovem que
tenho à minha frente se sinta só, desprotegida, desamorada. Aqui, minha jovem,
estais na paz do Senhor.
Raquel Aboab não disse nada, nem
sequer se moveu até que o cardeal, depois de fazer o sinal da cruz com a mão
direita aberta e de lhe conferir a bênção, a mandou sentar, mas em silêncio, a
um canto da sala. Durante as duas horas de reunião e conversas circulares,
Francesco Petrini raramente desviou os olhos da judia. Fazia-o com disfarçada cautela,
aparente indiferença, mas os outros depressa se aperceberam de que o clérigo
estava mais atento à beleza inquietante da rapariga do que aos assuntos ali
discutidos. No final do encontro, virou-se para ela e, na frente do grupo,
pediu que voltasse no dia seguinte por suspeitar que a sua presença ajudava à
criação de uma espécie de clima de paz celestial. Vinde, criatura de Deus,
vinde amanhã e sempre, exigiu o eclesiástico, à despedida. Porém, desconfiada
do súbito interesse do homem e de tão generosas intenções, Raquel Aboab
esclareceu, sem jamais olhar para o sinistro clérigo, que era seu desejo
manter-se na sede da Ordem, em clausura e orações penitenciais, até à chegada
da embaixada portuguesa a Roma. Não façais isso, porque desgosta a todos,
gritou Petrini, tomado entretanto por um sentimento de descontrolada insatisfação
pessoal». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor,
2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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