Cortesia
de wikipedia e jdact
Istambul, Sábado, 5 de Setembro. 22
horas
«Estava sentado sozinho e no
escuro, atrás da mesa de Hajib Kafir, com os olhos voltados para as janelas
empoeiradas do escritório e os minaretes intemporais de Istambul. Era um homem
que se sentia bem numa dúzia de capitais do mundo, e Istambul era uma das suas
favoritas. Não a Istambul para turistas da rua Beyoglu ou do espalhafatoso Bar
Lalezab do Hilton, mas a Istambul dos recantos ocultos que só os muçulmanos
conheciam: os yalis, os pequenos mercados além dos souks e o Telli Baba, o
cemitério onde só uma pessoa estava enterrada e aonde ia gente para rezar na
sua intenção. A espera do homem era marcada por uma paciência de caçador e pela
absoluta imobilidade de que domina o corpo e as emoções. Era do País de Gales e
tinha a beleza enigmática e tempestuosa dos seus antepassados. Cabelos pretos,
rosto forte e olhos vivos, de um azul intenso. Tinha mais de um metro e oitenta
de altura e o corpo de um homem que se mantinha em boas condições físicas. Os
cheiros de Hajib Kafir impregnavam a sala, o seu fumo adocicado, o seu acre
café turco e o seu corpo gordo e oleoso. Rhys Williams não dava atenção a esses
odores. Estava pensando no telefonema que lhe haviam dado de Chamonix uma hora
antes.
Um terrível acidente! Creia que
estamos todos arrasados, Williams. Tudo aconteceu com tanta rapidez que não
houve chance de salvá-lo. O Roffe morreu instantaneamente. Sam Roffe era
presidente da Roffe and Sons, a segunda companhia de produtos farmacêuticos do
mundo, uma dinastia de muitos milhões de dólares que se espalhava por todo o
globo. Era impossível acreditar na morte de Sam Roffe. O homem sempre fora
muito dinâmico, cheio de vida e energia, sempre em movimento, dentro de aviões
que o levavam a fábricas e escritórios da companhia através do mundo, onde
resolvia problemas que os outros nem podiam enfrentar, criava novos conceitos e
fazia todos trabalhassem mais e melhor. Embora houvesse sido casado e tivesse
uma filha, o seu único interesse na vida havia sido os negócios. Sam Roffe
tinha sido um homem brilhante e extraordinário. Quem poderia substituí-lo? Quem
seria capaz de governar o imenso império que ele deixava? Roffe não havia
escolhido um herdeiro legítimo. Também não havia pensado em morrer aos cinquenta
e dois anos. Sempre pensara que havia tempo de sobra. E agora o tempo estava
esgotado. As luzes do escritório se acenderam de repente. Rhys Williams olhou
para a porta, ofuscado por um momento.
Williams! Não sabia que havia alguém
aqui. Era Sophia, uma das secretárias da companhia, que era sempre designada
para servir Williams quando ele estava em Istambul. Turca, na casa dos vinte
anos, tinha um belo corpo sensual, estonteante de promessas. Fizera Rhys saber,
através de subtis e antigas sugestões, que estava à sua disposição para dar-lhe
os prazeres que desejasse, na hora que quisesse, mas Rhys não se interessava.
Sophia disse: voltei para acabar algumas cartas para o Kafir. Acrescentou,
então, com uma voz bem doce: quem sabe se não posso também prestar-lhe algum
serviço... Quando ela se aproximou da mesa, Rhys sentiu o cheiro almiscarado de
um animal selvagem no cio. Onde está o Kafir? Sophia abanou a cabeça com pesar.
Já foi e não volta mais hoje. Deseja alguma coisa? Alisou com as palmas das mãos
macias e hábeis à frente do vestido. Tinha olhos negros e húmidos.
Desejo, sim. Procure-o. Não sei
onde ele pode estar... Tente o Kervansaray ou o Mermara. Estaria decerto no
primeiro desses lugares, onde uma das amantes de Hajib Kafir apresentava a
dança do ventre. Mas Kafir era imprevisível. Poderia até estar em casa junto
com a mulher.
Vou
tentar, mas não sei se..., murmurou Sophia. Diga-lhe que, se não estiver aqui
dentro de uma hora, será despedido. A expressão do rosto dela mudou. Vou ver o
que posso fazer, Williams. Encaminhou-se para a porta. Apague a luz quando
sair. De qualquer maneira, era mais fácil ficar ali no escuro na companhia dos
seus pensamentos. A imagem de Sam Roffe estava presente sempre. A escalada do
monte Branco deveria ter sido fácil naquela época do ano, começo de Setembro.
Sam tinha tentado a empreitada anteriormente mas as tempestades o haviam
impedido de chegar ao cimo. Desta vez vou cravar lá em cima a bandeira da
companhia, dissera ele a Rhys. E então houvera o telefonema de há pouco, quando
ele se preparava para deixar o Pera Palace, onde estivera hospedado. Ouvia
ainda a voz nervosa ao telefone. Estavam atravessando a geleira... Roffe
falseara o pé e a sua corda se partira. Caíra numa fenda profunda. Rhys podia
visualizar o corpo de Sam na colisão com o gelo implacável e a sua queda no
abismo. Procurou então afastar a cena do espírito. Aquilo já era passado. O presente
é que surgia repleto de preocupações. Era preciso comunicar a morte às pessoas
da família de Sam Roffe, e elas estavam espalhadas por várias partes do mundo».
In
Sydney Sheldon, A Herdeira, Edições ASA, 2018, ISBN 978.989-234-299-3.
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