terça-feira, 7 de maio de 2019

Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Desejo é uma palavra com a vivez do sangue e outra com a ferocidade de Um só Amante. Desejo é Outro. Voragem que me habita»

Cortesia de wikipedia e jdact

Do Desejo (1992)
[…]
Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?

Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Esse da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes porquê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.

Aquele Outro não via minha muita amplidão.
Nada LHE bastava. Nem ígneas cantigas.
E agora vã, te pareço soberba, magnífica
E fo… como quem morre a última conquista
E ardes como desejei arder de santidade.
(E há luz na tua carne e tu palpitas.)
Ah, porque me vejo vasta e inflexível
Desejando um desejo vizinhante
De uma Fome irada e obsessiva?

Lembra-te que há um querer doloroso
E de fastio a que chamam de amor.
E outro de tulipas e de espelhos
Licencioso, indigno, a que chamam desejo.
Há o caminhar um descaminho, um arrastar-se
Em direcção aos ventos, aos açoites
E um único extraordinário turbilhão.
Porque me queres sempre nos espelhos
Naquele descaminhar, no pó dos impossíveis
Se só me quero viva nas tuas veias?

Se te ausentas há paredes em mim.
Friez de ruas duras
E um desvanecimento trémulo de avencas.
Então me amas? Te pões a perguntar.
E eu repito que há paredes, friez
Há, olimentos, e nem por isso há chama.
Desejo é um Todo lustroso de carícias
Uma boca sem forma, em Caracol de Fogo.
Desejo é uma palavra com a vivez do sangue
E outra com a ferocidade de Um só Amante.
Desejo é Outro. Voragem que me habita».
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT