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«(…) Não sei de ninguém que o tenha comentado, nem em privado nem em
público, para achar estranho ou para se rir, e quase suspeito que pouca gente
terá lido as páginas em que o conto, nas autobiográficas, precisamente, e não
nas de amena invenção: pois se assim não fosse, se fossem relativamente
conhecidas, como é que não ia existir um leitor suficientemente inteligente,
suficientemente sensível para se deter no facto, para interrogar o protagonista,
ou, se não o considerasse como tal, o narrador? Mas a verdade é que nunca me
perguntaram por Ashverus, até ao ponto de me fazerem crer que a memória do seu
nome se perdeu, pois não quero pensar que se interprete o meu relato como sendo
fantástico, senão mesmo como invenção trocista, daquelas que não se podem
receber com a desejada seriedade, mas sim com a irritação ou com a repulsa que
a mentira exige. Vejo-me, pois, na necessidade de repetir, ainda que com menos
palavras, que Ashverus e eu nos encontrámos num café de Nova lorque numa tarde
de Estio, e que naquele momento se iniciou uma curiosa amizade que ainda mantemos,
se bem que já não como outrora, convivência frequente de entrevistas e demorados
colóquios, mas sim recados periódicos ou notícias indirectas que me chegam de qualquer
parte do globo: Salisbúria ou Valparaíso, pois insiste no seu ofício de
procurar a paz ali onde ela se altera. A sua última missiva rezava
textualmente:
De Santiago tive de sair disparado, e o postal traz o carimbo de
Callao.
Não esperava a menor relação de Ashverus com o livro de Claire nem com
o tema de Napoleão. Ashverus não escreve história: tem vindo a fazê-la há,
aproximadamente, dois mil anos; das maneiras mais peregrinas, nos lugares menos
suspeitos e sempre com nomes sob os quais ninguém poderia imaginar esconder-se
outra coisa. Se o menciono aqui, se me refiro a ele, é porque graças a ele
conheci e lidei em Nova Iorque com pessoas, frequentei círculos, sobre os quais
as polícias costumam estar mal informadas, mas que não é por isso que deixam de
ter a sua importância, pelo menos para mim. É claro que Nova Iorque, conforme
algumas vezes concordámos, é uma das cidades mais mal conhecidas do mundo,
precisamente porque abundam as pessoas que pensam tê-la na cabeça como um mapa,
e que com o resultado da sua experiência escrevem romances ou livros de sociologia.
Acontece, por exemplo, que os homens verdadeiramente raros, esses que escapam a
qualquer classificação, bem como às concepções racionais, excluídos pouco a
pouco de outros lugares onde se vai tornando difícil dissimular-se e ir andando,
têm vindo a convergir em Nova lorque, onde seriam procurados se praticassem a
antropofagia ritual ou a poligamia, se negociassem descaradamente no tráfico de
mulheres ou na droga; mas um inventor de religiões (suponhamos frequente), a
quem inquieta? E quem ousa levar a sério alguém que se confesse imortal? Assim
foi possível, assim ainda o é, que aquele que se chama a si mesmo Enoch, e
assegure ser o da Bíblia, coloque diariamente a sua barraca e a sua bandeira
estrelada num passeio da Rua Quarenta e Três, quase esquina com a Quinta, e
depois de declarar que o Senhor o arrebatou aos Empíreos há uns quantos séculos
e que lá em cima permaneceu vivo entre os santos e, a bem dizer, de reserva,
revele que Vem agora à Terra para anunciar o fim do mundo, que chegará de um
momento para o outro, que está, como quem diz, ao virar da esquina no século em
que estamos, e a pregar, por conseguinte, o arrependimento e a penitência. Do
mesmo modo, num lugar não distante do café em que nos conhecemos, Ashverus e
eu, num rés-do-chão pequenito de um edifício enorme, aquele que diz chamar-se
Elias, e vende livros antigos, por pouca confiança que se tenha com ele, conta
a quem quiser ouvi-lo a história do carro de fogo que o levou pelos ares: pois
alguém me garantiu que um e outro se encontram todos os dias numa tasca
hebraica, e que falam sem fim da sua experiência no Paraíso». In
Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino,
1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas,
Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT