Cortesia
de wikipedia e jdact
Tengo.
Uma ideia inusitada
«(…)
Os sons no seu entorno também soavam distantes. E
essa imagem que lhe era tão habitual
projectava-se inúmeras vezes na sua tela mental. Seu corpo começava a
transpirar. Sob a camisa, sentia o suor brotar nas axilas. O corpo dava leves
tremeliques. Os batimentos cardíacos aceleravam, provocando intensa palpitação.
Quando estava com alguém, Tengo fingia estar com vertigens. De facto, os sintomas
eram semelhantes, e era só uma questão de tempo para o seu estado voltar ao
normal. Nessas ocasiões, ele tirava o lenço do bolso e, levando-o à boca,
mantinha-se quieto. Para tranquilizar quem o acompanhava, costumava levantar a
mão sinalizando que estava tudo bem. Às vezes, passava em trinta segundos; em
outras, levava pouco mais de um minuto. Durante esse tempo, a mesma imagem se
repetia várias e várias vezes de modo automático, como se a tecla de repetição
do vídeo-cassete estivesse accionada: sua mãe soltava a alça da camisola e um
homem chupava os seus bicos empinados. Ela fechava os olhos e ofegava em longos
suspiros. Um ténue cheiro nostálgico de leite materno pairava no ar. O olfacto
é o órgão mais desenvolvido do bebé. Ensinava-lhe muita coisa. Em certas
ocasiões o olfacto é que lhe ensinava tudo. Não se ouvia nenhum som. O ar se
transformava num líquido pastoso. A única coisa que parecia audível eram as
suaves batidas do seu coração. Veja isso, os dois lhe diziam. Veja somente isso, eles lhe diziam. V. está aqui e não
tem para onde ir, diziam eles. Mensagem que se repetia várias e várias vezes.
Desta vez, o ataque demorou a passar. Tengo mantinha os
olhos fechados e, como de costume, segurava o lenço sobre a boca mordendo-o com
força. Ele não saberia dizer quanto tempo durou. O único jeito de sabê-lo era
por meio da exaustão física que sentia após o ataque. Seu corpo estava muito
fatigado. Era a primeira vez que sentia tamanha exaustão. Levou tempo até poder
abrir novamente os olhos. Os sentidos queriam despertar o quanto antes, mas
seus músculos e órgãos ofereciam resistência. Ele se sentia como um animal em
hibernação que, confundindo a estação, despertara antes do previsto. Ei...
Tengo!, alguém o chamava havia algum tempo. Era uma voz que parecia vir das
profundezas de uma caverna. Foi quando se lembrou de que esse era o seu nome. O
que aconteceu? É aquilo de novo? Está tudo bem?, perguntava a voz. Desta vez,
ela parecia mais próxima. Tengo finalmente abriu os olhos e os fixou na sua mão
direita, agarrada à borda da mesa. Certificou-se de que o mundo não se havia desintegrado
e que ele continuava a ser ele mesmo. Ainda sentia uma certa dormência, mas,
com certeza, aquilo que via era realmente a sua mão direita. Também sentiu
cheiro de suor. Era um odor estranhamente selvagem, como aquele que sentimos em frente à jaula dos
animais no zoológico. No entanto, não havia nenhuma dúvida de que o odor era
seu.
Sentiu sede. Esticou o braço, pegou
o copo sobre a mesa e tomou metade da água, cuidando para não derramá-la.
Descansou um pouco para retomar a respiração e, em seguida, bebeu o restante da
água. Foi recobrando a consciência e, gradativamente, reanimando os sentidos.
Colocou o copo de volta na mesa e enxugou a boca com o lenço. Desculpe-me. Já
estou melhor, disse Tengo. Em seguida, assegurou-se de que Komatsu era quem se
sentava à sua frente. Os dois estavam conversando numa cafeteria na proximidade
da estação Shinjuku. As vozes ao redor voltaram a soar como de costume. Um
casal sentado na mesa ao lado olhava-o, indagando entre eles o que teria
acontecido. A garçonete estava em pé, ao lado da mesa, parecendo apreensiva.
Possivelmente temerosa de que ele vomitasse no assento. Tengo ergueu o rosto e
sorriu para ela, na tentativa de acalmá-la. Por acaso isso é algum tipo de
ataque?, perguntou Komatsu.
Não é nada grave. É como uma
vertigem. Se bem que um pouco mais intensa..., explicou Tengo. Sua voz não soava
como sua, mas já estava bem-parecida. Se isso acontecer quando estiver dirigindo,
é um perigo, disse Komatsu, olhando
para Tengo. Eu não dirijo. É melhor. Um amigo meu, que é alérgico a pólen de
cedros, começou a espirrar enquanto dirigia e acabou batendo no poste. Mas, no
seu caso, não se trata de espirros. Na primeira vez que te vi assim, confesso
que fiquei assustado, mas, como é a segunda vez, a gente já não se assusta
tanto. Sinto muito. Tengo pegou a xícara de café e tomou um gole. Não sentiu
gosto de nada. Era como engolir um líquido morno. Quer que eu peça mais água?,
perguntou Komatsu. Tengo recusou: não, não precisa. Já estou melhor. Komatsu
tirou do bolso do blazer um maço de Marlboro e acendeu um cigarro com os
fósforos da cafeteria. Depois, lançou um rápido olhar ao seu relógio de pulso».
In
Haruki Murakami, 1Q84, 2009, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-053-4.
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