Cortesia
de wikipedia e jdact
O piquenique das tardes de quarta-feira
«Soube da sua morte por um amigo. Ele viu a notícia quando passava os olhos
pelas páginas de um matutino, e a leu lentamente para mim ao telefone. Texto
simples. Tipo de artigo em geral delegado a repórteres recém-formados à guisa
de treino. No dia tanto do mês tal, um caminhão dirigido por alguém, atropelou
outro alguém, em certa esquina. Alguém estava sendo investigado por homicídio
involuntário. Parecia um poema curto, desses de primeira página de revista. Onde
vai ser o enterro?, perguntei. Não faço ideia, respondeu. Para começo de
conversa, ela tinha casa e família? Tinha, é claro. Liguei no mesmo dia para a esquadra
de polícia e obtive o seu endereço e o número do telefone. Liguei para o número
e informei-me a respeito dos detalhes do enterro. Quase tudo se consegue com um
pequeno esforço, já disse alguém.
A sua casa ficava na parte baixa da cidade. Abri um mapa
regional de Tóquio e marquei a área com esferográfica vermelha. Típico bairro
de cidade baixa. Linhas férreas, de metropolitano e de autocarro
entrecruzavam-se como fios de uma teia tecida por aranha desnorteada.
Incontáveis ruas e canais atulhavam a área e agarravam-se à crosta terrestre
como rugas em casca de melão. No dia do enterro tomei um carro eléctrico em
Waseda. Saltei perto do fim da linha e consultei o mapa, que, naquelas
condições, me foi quase tão útil quanto o mapa-múndi. Até chegar ao meu
destino, eu já tinha perdido a conta dos maços de cigarro comprados em troca de
informações.
Era
uma casa velha de madeira circundada por uma cerca de tabuinhas marrom. À
esquerda do portão havia um jardim minúsculo, de utilidade discutível, e a um
canto, abandonado, um velho fogareiro portátil de cerâmica com quase quinze
centímetros de água de chuva estagnada. A terra do jardim era preta e húmida. Ela
tinha saído de casa aos dezasseis anos. Isso podia explicar o clima melancólico
do funeral. Estavam presentes apenas os familiares, gente idosa na sua maioria.
A cerimónia foi presidida pelo irmão mais velho, ou quem sabe cunhado, um homem
aparentando pouco mais de trinta anos. O pai
devia andar pela casa dos cinquenta. Era miúdo e usava faixa de luto na manga
do casaco preto. Em pé, ao lado do portão, manteve-se quase imóvel durante todo
o tempo. O seu aspecto lembrava asfalto depois que a água da enchente escoa.
Conheci-a no Outono de 1969. Eu tinha vinte anos na época,
e ela, dezassete. Havia uma pequena cafeteria perto da faculdade onde eu
costumava reunir-me com colegas. Não era grande coisa de estabelecimento, mas
ali V. podia sempre tomar um café horroroso ao som de hard rock. Ela se sentava
sempre no mesmo lugar, cotovelos fincados na mesa, absorta na leitura de um
livro qualquer. Usava óculos que lembravam aparelho ortodóntico e tinha mãos
esqueléticas, mas conseguia ser de algum modo atraente. O seu café estava
sempre frio, e o cinzeiro, sempre cheio de pontas de cigarro. As únicas
variantes eram os livros. Ora Mickey Spillane, ora Kenzaburo Oe, ora Allen
Ginsberg. Não lhe importavam autores ou temas, bastava-lhe apenas que fossem
livros, quase sempre emprestados de estudantes que frequentavam o local. Ela os
lia vorazmente de cabo-a-rabo, como se roesse uma espiga de milho. Naquela
época as pessoas emprestavam com prazer, de modo que nunca lhe faltou material
para leitura. Eram tempos também do The Doors, dos Stones, dos Byrds, do Deep
Purple e dos Moody Blues. Havia certa dose de
tensão e instabilidade no ar, dando a impressão de que um bom pontapé
seria capaz de deitar abaixo quase tudo. Passávamos os dias bebendo uísque
barato, praticando um sexo chocho, discutindo sem chegar a conclusão alguma ou
emprestando livros uns aos outros. Enquanto isso, a cortina caía rangendo sobre
a década de sessenta, de incómoda memória.
Esqueci o nome dela. Posso procurar o recorte do jornal e
verificar, mas nome é o que menos importa agora. Eu o esqueci. Só isso. Uma vez
ou outra acontece de me reunir com velhos amigos e de, por acaso, ser ela o
assunto da conversa. Ninguém se lembra do nome dela. Dizem, naqueles velhos
tempos tinha uma garota que dormia com qualquer um, lembra, como era mesmo o
nome dela?, esqueci completamente, eu mesmo dormi com ela algumas vezes, por
onde andará agora, ia ser engraçado topar com ela de repente no meio da rua. Era
uma vez uma garota que dormia com qualquer um. Eis o seu nome». In Haruki
Murakami, Caçando Carneiros, 1982, Alfaguara, 978-857-962-308-0, Casa das
Letras, 2007, ISBN 978-972-461-715-2.
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