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«(…) Não é esse o nosso caso, respondeu o padre Villaescusa. O Rei não
foi às put… porque a Rainha o tenha repelido. Investiguei tudo: o Rei há várias
semanas que não acorre aos aposentos da Rainha. Não houve, pois, rejeição que
explique, sem a justificar, uma infidelidade. Foi neste momento que o inquisidor-mor
interrompeu a discussão com um bocejo: tão grande que quase se lhe desencaixa a
mandíbula; tão sonoro que cobriu a resposta do padre Almeida. Reverências,
disse, não vos parece que o primeiro ponto da discussão está suficientemente
debatido? Consta-nos que o Rei foi às put…, mas o padre Almeida, com o seu
enorme senso comum, semeou a dúvida de que os Reis nossos senhores estejam
efectivamente casados. Eu disse a dúvida, não a certeza. Nomear-se-á uma
comissão que estude o caso e emita o seu parecer. Fica de pé um pecado, no ar
outro, mas aquele é da incumbência do confessor, não deste alto Tribunal.
Observo que Vossas Mercês estão encaloradas. Eu também. Proponho um descanso,
enquanto nos refrescamos com umas bebidas frias que mandei preparar.
Suspende-se, pois, a sessão por meia hora. Os presentes que tinham estado
sentados puseram-se de pé, com rebuliço de hábitos de diversos cortes e cores.
Os contendores daquela batalha dialéctica esperaram que o inquisidor-mor saísse,
depois de ter recolhido (o inquisidor-mor) as longas caudas da sua vestimenta.
À saída respeitaram uma rigorosa ordem de hierarquias, de modo que, sem se
olharem, o padre Villaescusa e o de Almeida saíram a par. No claustro
esperavam-nos os refrescos.
Distribuíram-se por afinidades teológicas e pela preferência por
determinadas bebidas: uns pela água de cevada, outros pela salsaparrilha,
outros ainda pela popular orchata, salvo o inquisidor-mor, que preferiu um copo
de frio clarete bebido na sua taça etrusca, uma jóia que trouxera de Itália,
adquirida após misteriosos e arriscados tratos em que tinham participado um
cardeal da Santa Cúria e uma prostituta de clara linhagem, muito afecta aos
interesses da Santa Sé, da qual tinha recebido um título de princesa que
arrastava por leitos ilustres, ou pelo menos ricos: Sua Excelência acariciava o
requintado cristal enquanto saboreava o vinho, e tanto os seus dedos como a sua
língua estremeciam de recordações gloriosas. Olhava, da sua altura, para os
seus colegas, e, salvo o padre Enríquez, que era irmão de um grande de Espanha,
metido a frade devido a um fracasso amoroso, e o padre Almeida, evidentemente
distinguido com a sua preferência, considerava os restantes como labregos
empanturrados de textos em latim, malcheirosos alguns, toscos de maneiras os
demais, vindos da gleba, fugitivos do arado. Algum deles não tardaria a ser
bispo. Meu Deus, oxalá que o fosse de terras longínquas, onde restavam tantos
índios por converter, ainda que fosse à chicotada! Tudo menos recebê-los em
audiência mês após mês, àqueles frades, para lhe exporem questões de heresias
rurais, listas de suspeitos judaizantes e mouriscos, ou de gentes ignaras de
estranhas práticas sexuais. Quem não será judeu neste país? E recordou a sua
trisavó, conversa de Saragoça, que em tempos do rei Fernando tinha escorado com
os seus dobrões uma antiquíssima casa de godos que se desmoronava. Tinha tirado
a luva da mão esquerda, luva roxa de arcebispo in partibus, para
apreciar melhor a frescura do clarete e o delicado talhe do cristal.
Dois dominicanos e dois franciscanos tinham-se posto a discutir sobre
os pecados do Rei, à luz das informações chegadas, a uns e a outros, por vias
populares. As possibilidades eram três, segundo as ditas informações: quatro
cópulas e um fracasso à quinta, as quatro cópulas sem fracasso, e o fracasso
como única realidade pecaminosa. O que se discutia não deixava de ser
complicado: se as quatro cópulas deviam considerar-se como um único delito, ou
como quatro; se o fracasso, isolado ou em conjunto unitário, deveria
considerar-se também como pecado mortal em matéria de intenção ou se, dadas
certas circunstâncias bastante incertas e difíceis de deslindar, tais como se a
intenção tinha sido provocada pela cúmplice ou se tinha obedecido a um impulso
real podia entender-se como meramente venial; finalmente, se a cúmplice, sem
dúvida alguma sabedora de com quem partilhava o leito e a quem oferecia a sua
colaboração para o pecado, devia ou não ser considerada ré de um delito contra
o Estado, e não só como habitual pecadora contra Deus, e, portanto, transferida
para a jurisdição ordinária para que a julgassem segundo as leis civis. Armavam
tal confusão, em latim e em romance, que a maior parte dos presentes tinham
acabado por formar uma roda e os escutavam com mostras de aprovação ou de
repulsa, salvo o padre Rivadesella, que se ria deles francamente. O padre
Almeida não figurava entre os vociferantes: tinha-se encostado a uma pilastra e
observava como a luz dourava os ramos das árvores, e como mais abaixo ia
morrendo nas flores. O inquisidor-mor aproximou-se dele, sorridente». In
Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado
(Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992,
ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da Caminho/JDACT