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«(…) Quando o padre Almeida pediu que lhe permitissem tirar a sotaina,
porque fazia muito calor, mais do que com hostilidade, a maior parte dos
membros do Supremo fitaram-no atentamente, já não irados, mas estupefactos, e
embora quase todos pensassem que conviria examinar aquele desconhecido em matéria
de ortodoxia, a maior parte deles tinha admitido, sem graves dificuldades
mentais, que não seria necessário o tormento, e que um hábil interrogatório
bastaria. E entre eles figuravam bastantes com reputação de hábeis
interrogadores. O padre Almeida dobrou cuidadosamente a sotaina e pô-la sobre o
seu assento, com o chapéu. Reverendos senhores, não vou citar os santos padres
nem os textos sagrados. Apenas me permitirei recordar-vos a unanimidade de
todos os moralistas e de todos os teólogos em exigirem, como condição básica do
casamento, a liberdade dos cônjuges. Ora bem, seriam os nossos amados Reis
livres ao casarem-se? Passeou os olhos à sua volta. Ouviam-no, mas não pareciam
dispostos a responder-lhe, salvo o padre Villaescusa. Quem duvida? Foram
interrogados de acordo com as formalidades do cerimonial, e ambos disseram que
sim. E poderiam dizer que não? Rogo a Vossa Paternidade que medite a resposta.
O padre Villaescusa pareceu hesitar um momento. Depois, respondeu: não
entendo a pergunta. O padre Almeida é bastante subtil. Não parece jesuíta. Subtil,
diz Vossa Reverência? Pois eu vejo o caso bem claro: trata-se de dois príncipes
imbuídos desta condição; trata-se de dois adolescentes, que foram educados na
obediência a seus pais, que, além disso, são Reis. Como poderiam dizer que não?
No entanto, os seus sins estavam condicionados pelo duplo carácter de príncipes
e de adolescentes. Não foram afirmações livres. De entre a massa dos peritos
saiu uma voz de cana rachada. Talvez o padre Almeida não se aperceba de que
está a pôr em causa o mais antigo dos nossos costumes, o de que os pais
concertem o casamento dos filhos, bem como o de solicitar a anuência da Igreja.
O padre Almeida voltou-se para o falante, que era um frade velho de uma ordem
secundária. Eu não ponho nada em causa. Eu nem sequer julgo. Limito-me a
apresentar a Vossas Paternidades factos indiscutíveis, dos quais, para este
caso, e só para este caso, me permito tirar ilações. O resto é da incumbência
deste Santo Tribunal (maldito), não da
minha.
Mesmo supondo que o padre Almeida tivesse razão, a ulterior consumação
do casamento legaliza-o e santifica-o. O padre Almeida não precisou de mudar de
posição, nem sequer de mexer a cabeça: o seu interlocutor encontrava-se diante
dele, bem visível na sua cólera contida, mas evidente. Rogo ao reverendo padre
Villaescusa que imagine por um momento que dizem a um adolescente: logo à noite
tens que entrar no quarto da Rainha, e fazer isto e aquilo. E que dizem à
Rainha: logo à noite, o Rei entrará no teu quarto: não lhe oponhas resistência,
porque é a tua obrigação. De facto, padre: era essa a sua obrigação. Quem se
atreve a duvidar? A obrigação da esposa é receber o seu esposo no leito e, como
Vossa Paternidade diz, não lhe opor resistência. Admito que também fosse a
obrigação do Rei; mas quem vai obrigado não vai livre. Se seguíssemos a sua
doutrina, a maior parte dos casamentos seriam ilegais. Isso, reverendo padre,
não sou eu que tenho que o concluir. Limito-me a mostrar a vossas reverências
que os sucessivos acessos do Rei ao corpo da Rainha foram fruto do dever, não
da liberdade. Esquece Vossa Mercê a obrigatoriedade do dever conjugal? Do ponto
de vista do Rei ou da Rainha?, arguiu rapidamente o jesuíta. Eu entendo-o como recíproco,
interveio da sua altura um dominicano do Supremo; ainda que, naturalmente, na
maior parte dos casos seja uma obrigação da esposa, que nem sempre está
disposta e, no entanto, deve aceder, para evitar males maiores». In
Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado
(Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992,
ISBN 972-21-0708-9.
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