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«(…) Uma
noite em S. Carlos estreava-se
uma celebridade lírica na Norma, que então estava muito na voga. Henrique
vivamente instado pela mãe e pela irmã e também um pouco pelo seu próprio
desejo, determinou ir ouvir a ópera adorável, que é uma verdadeira perola
musical. Havia tempos que ele andava nervoso e inquieto. Não sabia bem o que
tinha mas sentia-se mal. Tinha impaciências nervosas que nunca tinha conhecido
no seu organismo equilibrado e harmónico. Surpreendia-se ás vezes doentiamente,
a fazer planos impossíveis antes de adormecer; a imaginar quanto seria bom ser
muito rico, viver na alta-roda, naquela esfera aristocrática e distinta em que
se não trabalha, em que se falia de um modo especial e característico, com
termos escolhidos, com inflexões muito mais suaves, com uns certos desdéns que
dantes lhe pareciam ridículos e que lhe estavam agora parecendo superiormente
requintados. Ter um palacete com alguns salões apainelados em cuja escadaria de
mármore povoada de estátuas e de plantas raras, se aprumassem espadanados
lacaios de farda; ter equipagens luxuosas, ter uma mulher loura, franzina, de
testa curta, de olhos piscos, com um sorriso felino, quase cruel nos lábios
vermelhos, e um corpo flexível, delicado, mignon de estatueta de biscuit... Uma mulher que se chamasse Margarida. Neste ponto
do seu pensamento, Henrique suspendia-se como que sentindo a estranha impressão
de quem vai caminhando por uma estrada lisa e de aparências tranquilizadoras, e
encontra de repente, debaixo dos pés, quando menos o espera um reptil
desconhecido.
Margarida!
Que tinha ele com Margarida?! Lembrava-se que a desprezara e amaldiçoara no dia
em que vira chegar a sua casa, pálido, desfeito, com uma casaca grotesca e uns
olhos inchados e vermelhos de chorar, o seu pobre amigo Tadeu, que na véspera o
tinha deixado tão louco de alegria e tão triunfante de felicidade! Margarida! Vira-a
depois loura, elegante, com o seu desdenhoso olhar de míope, subir com
ligeireza fidalga o estribo de uma carruagem, descobrindo os finos bordados das
suas saias, o pequeno pé primorosamente calçado, todo um poema de misteriosas
elegâncias. Nunca mais a vira, nunca mais desejara vê-la! Para quê? Ela lá tão
em cima, ele cá em baixo lidando, tressuando, lutando para alcançar... O que
talvez não tivesse nunca! Um nome, uma posição, o pão da sua mãe e da sua irmã,
sem amarguras e sem pequenas privações humilhantes! Naquela noite em S. Carlos
a música sentimental e enervante de Belini, o contacto de todo aquele mundo
ocioso e rico ainda o tornava mais nervoso e excitado. Estava quase arrependido
de ter vindo.
Nisto
sentiu que lhe batiam no ombro e uma voz aflautada, uma voz tremelicante, com
inflexões muito alegres, disse-lhe ao ouvido: anda cá acima, pediram-me para te
vir buscar, para te apresentar; gostam muito de ti! Não imaginas como és
estimado pela minha querida Margarida, desde que soube que tens sido o meu
único amigo, o meu auxílio na vida, aquele a quem mais devo depois dela. E
Tadeu, porque era ele, arrastava pelos corredores das frisas Henrique
surpreendido, contrariado, com uma estranha sensação de desconforto a
comprimir-lhe fortemente o peito.
Na
frisa, radiante da mocidade, de fina distinção, com todos os requintes da moda
a fazer realçar a sua beleza moderna, frágil, quebradiça, alguma coisa
amaneirada estava Margarida. A marquesa ao lado dela conversava com um velho
diplomata. A entrada dos dois a mãe teve um comprimento um pouco seco, a filha
um sorriso de graça adorável, de garridice inata mas irresistível. Quis vê-lo
porque soube que tem sido muito bom para Tadeu, excelente mesmo. Ele contou-me
tudo. Pobre rapaz! Poor dear boy!
E sorriu-se outra vez com um aspecto bondoso e
protector que a
transfigurou por instantes. Eu tinha-me esquecido, o Tadeu é que se lembrava de
tudo. Fez-me reviver a minha infância. Sempre é bom. Agora já estou tão velha
que acho imensa graça a estas recordações do passado». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos
Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências
de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História
Verdadeira, Wikipedia.
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