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«(…) E
graciosa, maternal, afastando toda e qualquer ideia que não traduzisse uma
solicitude encantadora para o seu companheiro da infância, Margarida foi o que
seria a noiva idealizada pelo austero coração de Henrique. E dali em diante o
amigo de Tadeu deixava-se arrastar de oito em oito dias até ao palacete dos
marqueses. Era ali optimamente recebido. Margarida, adorada pelos pais, dava a
lei em casa. Sabiam-na voluntariosa, cheia de caprichos e de fantasias, tinham
medo de irritá-la resistindo-lhe… Depois, Henrique com as suas maneiras de gentleman, com a gravidade desafectada
do seu porte, com os generosos ardores da sua rica organização, revelava-se o
que era: um homem de futuro, um homem que havia de ter nome mais tarde. O
marquês, cínico como a vida o tornara, era juiz excelente neste assunto.
Conhecia um homem depois de duas horas de conversação. As próprias severidades
do rapaz, amolecidas agora ao contacto da perturbadora formosura de Margarida,
agradavam ao marquês como uma coisa nova, picante, inteiramente imprevista para
ele. Tadeu nadava num júbilo celeste. Era muito bem tratado; Margarida tinha
com ele umas garridices angélicas que ás vezes o deixavam pálido e sufocado,
encostado a uma árvore ou a um banco do jardim para não cair no meio do chão
desfeito em lagrimas.
Tadeu
tinha agora de vez em quando um odio selvagem à sua mesquinha e enfezada
personalidade. Se ele não fosse como era... Se fosse alto, esbelto, forte...
Pode ser... Tem-se visto tanta coisa... E também ficava absorto, idiota,
seguindo com um olhar esgazeado umas visões que o iam enlouquecendo. Ela no entanto
vinha alegre, radiosa, cheia de vida, com o seu vestido de foulard cor
de carne a desenhar-lhe as formas flexíveis, com uma rosa nos seus cabelos
louros, dava-lhe o braço, e arrastava-o enlevado e estúpido pelas alamedas do
jardim. Conta-me lá o que tu fazias quando eu cá não estava! Conta-me em que
pensavas. Estavas muito triste? Quando é que viste pela primeira vez o teu
amigo Henrique? Que lhe dizias tu de mim? E ele?... Ele que ideia fazia desta
endiabrada pessoa que tu lhe descreveste tanta vez com a tua fantasia de poeta,
porque tu quando se trata de mim és poeta, meu pobre Tadeu! Anda, fala,
conta-me o que faziam, gosto tanto de te ouvir! E toda dobrada sobre o ombro
dele, meiga, eléctrica, fascinadora, com meneios de serpente, levava horas passeando
pelo braço de Tadeu.
Um ano
depois desta época, Margarida declarava terminantemente aos pais que voltava
para França, que ia morrer freira no convento onde vivera educanda, se eles a
não casassem com Henrique. E dizia-lhes estas palavras numa tal violência de
gritos e de soluços, tão magra, tão empalidecida naquela lacta íntima de doze
longos meses, que o marquês encolheu os ombros com a suprema indiferença que
fazia dele um viveur, e
que a marquesa animada pela placidez do marido ao encarar esta questão magna,
declarou à filha, hoje seus únicos amores, que ia fazer tudo para lhe dar o
noivo da sua alma, o escolhido pela sua ardente paixão juvenil. Teve medo de
ver a filha definhar-lhe e morrer-lhe nos braços. Via-a tão abatida, tão
triste, tão enfastiada da vida, que a ideia de perdê-la sobrelevou a todos os
seus escrúpulos de rica e de fidalga. Margarida autorizada pelos pais pôde
dizer a Henrique, que o amava!
Quanto
amor! Que entusiasmo febril neste sublime impudor da criança opulenta, formosa,
aristocrática, disputada por dezenas de noivos tão ricos e tão nobres como ela,
que vem espontaneamente oferecer a sua mão e a sua vida inteira ao obscuro
plebeu que passa confundido no meio das multidões desconhecidas! E esse
impudor, ninguém mais fidalga e altivamente do que Margarida o soube ter.
Sabia-se adorada, estremecida, sabia que um riso dela bastaria para as alegrias
e para as torturas de uma semana passada por Henrique na labutação da sua
mesquinha existência; mas sabia também que ele era tão grande, tão forte, tão
orgulhoso e digno que podia morrer, mas que morreria calado, sem que uma
palavra revelasse o seu martírio!» In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos Fantasias e
Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa),
1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História Verdadeira, Wikipedia.
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