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Nos quarenta anos que levo de
vida, estive preso em três ocasiões. A primeira foi quando os piratas árabes
atacaram o barco português onde era piloto, e me levaram refém para África, na
esperança de conseguirem um bom resgate. Foram dois duros anos de cativeiro. A
minha libertação teve um preço amargo e, ressentido como estava com o rei
português, iniciei uma vida nova como pirata, em barcos árabes. Mais de uma
década passou, entre
abordagens, abalroamentos e viagens pelo mundo. Contudo, três meses antes do
grande terramoto de Lisboa tive azar. O meu barco, pois ao fim de tanto tempo
já era capitão de um barco-pirata, cruzou-se a sul do Algarve com uma esquadra
francesa, que nos perseguiu e acabou por apanhar. Muitos dos meus companheiros
árabes, como anos antes acontecera aos portugueses, foram chacinados à minha
frente pelos franceses. Só eu e o meu ajudante, o meu amigo Muhammed, fomos
poupados. Quando chegámos a Lisboa, o capitão francês revelou a sua boa vontade
para com os portugueses entregando-nos como prémio. É sabido que as relações
dos reinos de França e Portugal não eram, e não são ainda, as melhores. Sendo a
França aliada da Espanha, e Portugal aliado da Inglaterra, temia-se uma guerra.
A esquadra francesa tinha, pois, de cair nas boas graças lusitanas e diminuir
as suspeitas quanto à sua presença. Que melhor forma do que entregar
prisioneiros piratas, odiados e temidos por todos os reinos?
Pela segunda vez na vida, fui preso,
desta vez no Limoeiro, onde o terramoto me apanhou. Nessa manhã, aliás, o meu
dia já se revelava emocionante. Pouco passava das nove quando um violento murro
me atingiu, e caí para trás desamparado, estatelando-me no chão do pátio da
cadeia. Os espanhóis tinham-me surpreendido. Não estava à espera de que me
apanhassem ali, nas
latrinas, a céu aberto, à frente dos outros prisioneiros. Nas últimas semanas,
a tensão entre mim e o chefe dos castelhanos era crescente. Na cadeia, embora
existissem vários bandos, o dos espanhóis, composto por desertores da última
guerra, era o maior e mais perigoso. O seu líder chamava-se Cão Negro, e era um
homem enorme, de quase dois metros de altura, um colosso de força e maldade.
Usava o cabelo negro longo a cair-lhe pelas costas e uma barba igualmente negra
e igualmente longa, e impusera com violência a sua tirania sobre o
estabelecimento. Ouviam-se relatos de gargantas cortadas, de homens asfixiados
só por o terem confrontado, e até os guardas o temiam.
Quando eu e o meu amigo árabe chegámos,
o Cão Negro deixou-nos em paz nas primeiras semanas. Muhammed não considerara,
isso um bom prenúncio. Ele ir atacar nós, Santamaria ir ver. Muhammed, um
pirata berbere, baixo e magro, há mais de uma década que me acompanhava nas
aventuras marítimas. Várias vezes me desafiara para passar por Lisboa, mas eu
nunca quisera voltar. Guardava um ressentimento congelado ao reino de Portugal
por não ter pago o resgate que me salvaria das prisões árabes. Mas, agora que
cá estava, nascera em mim um imparável desejo de justiça, uma necessidade
urgente de corrigir o destino. Considerava que Portugal tinha uma dívida para
comigo e que agora chegara o momento de a pagar, libertando-me do Limoeiro.
Afinal, eu era português. Mesmo que tivesse dificuldade em prová-lo, teria de
tentar. Para mais, sabia que Sebastião Carvalho Melo, o Carvalhão, que eu conhecia dos meus tempos de juventude,
era secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra do reino. Certamente que
ele se lembrava de mim, tínhamos vivido juntos alguns episódios inesquecíveis.
Assim, no final do primeiro mês de cativeiro, escrevera-lhe uma petição,
apresentando-lhe argumentos em defesa da minha libertação. Muhammed ficara
preocupado: E Muhammed? Se rei ir perdoar Santamaria, Muhammed ir ficar aqui
sozinho? Dissera-lhe que, mal fosse libertado, trataria de safá-lo também a
ele. Mas o árabe era desconfiado. Santamaria mentir! Santamaria ir deixar
Muhammed com Cão Negro, e eles ir enra… e ir matar Muhammed! Para minha
desilusão, as semanas tinham passado e a petição não obtivera resposta.
Entretanto, o ambiente na prisão tornara-se hostil. Os espanhóis estimulavam as
quezílias, e certo dia um dos tenentes do Cão Negro exigira que eu fosse
despejar as latrinas. Recusara e o Cão Negro aproximara-se uma manhã, no pátio
da prisão, acompanhado do seu gangue. A um metro de mim, ameaçara: cabrón, vais morrer aqui. És tu quem manda?, perguntei». In
Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos
vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro,
2010, ISBN 978-972-461-986-6.
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