sexta-feira, 31 de maio de 2019

Quando Lisboa Tremeu. No 31. 1755. Domingos Amaral. «O chão tremia, as paredes abanavam e um rouco ruído nascia naquele espaço. Junto à porta, os dois espanhóis desapareceram. O barulho tornou-se ensurdecedor…»

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«(…) O Cão Negro acenou com a cabeça, confirmando a sua autoridade e acrescentou: E tu tiens de limpiar mi mier… Eu bufara e depois respondera: assim será. O Cão Negro ficou a observar-me uns segundos, e depois deu uma gargalhada, agradado com o resultado da conversa. Os correligionários riram-se também. Só Muhammed não se riu, e quando os espanhóis se afastaram avisou-me: Muhammed não ir limpar mer…! Dei-lhe um carolo no alto da cabeçorra e disse: não te preocupes. Vais ver a mer… que vou limpar... Uns dias depois, as celas do Cão Negro e de alguns dos castelhanos apareceram borrifadas de fezes e de urina. Possessos com tal acto de rebeldia e desafio, prometeram vingança. O Cão Negro avisou-me: cabrón, és um homem muerto! Sem mostrar medo, respondi-lhe: tens de comer melhor, a tua mer… cheira mesmo mal. Foi ousadia e inconsciência a mais. Quando, na manhã de sábado, Dia de Todos-os-Santos, levei aquele murro, senti a vida por um fio. Dois espanhóis levantaram-me do chão e arrastaram-me para uma antecâmara onde não podiam ser vistos pelos guardas. Atiraram-me de novo para o chão e pontapearam-me as costelas. Depois, pararam e ficaram em silêncio e o seu líder apareceu, com uma barra de ferro nas mãos. Contra aquele colosso, se ele estivesse desarmado ainda podia ter hipóteses, assim era difícil.
O Cão Negro sorriu, com raiva, mostrando os dentes castanhos. Vou-te enfiar isto in el culo, cabrón! Recordei-me de uma cena, nas masmorras árabes. Tinham-me magoado e humilhado, mas nunca baixara os braços e sobrevivera. Levantei-me e dei dois passos atrás, procurando ganhar tempo. Olhei rapidamente à minha volta. Era uma sala deserta, não via nada que me ajudasse a vencer aquele combate. E Muhammed também não iria aparecer, pois os dois espanhóis bloqueavam a entrada. Vais chiar até morrer, cabrón, rugiu o Cão Negro. O mastodonte avançou, a correr, com a barra levantada, mas esquivei-me com rapidez e dei-lhe um murro no estômago. Grunhiu de dor e investiu de novo. Desta vez não consegui afastar o corpo, e a barra acertou-me na coxa, magoando-me. O Cão Negro sentiu a sua superioridade e voltou a atacar. Consegui bater-lhe na cara, mas perdi o equilíbrio ao desviar-me, escorreguei e caí. O bruto golpeou-me num braço e no ombro, e depois saltou para cima de mim. Rolámos os dois pelo chão, aos murros.
Procurava o ferro com os olhos quando uma violenta pancada no nariz me deixou atordoado. O Cão Negro levantou-se, a barra na mão, e gritou: reza, cabrón. A princípio, não percebi o que se passava. De súbito, havia medo nos olhos do Cão Negro. O chão tremia, as paredes abanavam e um rouco ruído nascia naquele espaço. Junto à porta, os dois espanhóis desapareceram. O barulho tornou-se ensurdecedor, caíram bocados do tecto e o local encheu-se de pó. O chão, onde eu permanecia caído, saltou, e num dos cantos da divisão desabou parte do tecto. Esquecendo a luta, o Cão Negro escapou para o pátio, enquanto mais pedras caíam, e eu me dobrava, protegendo a cabeça com as mãos. Houve um breve interregno de calmaria e tentei levantar-me, afastando as pedras de cima do corpo. A poeira escurecera a sala e não via a saída. No tecto, abrira-se um buraco enorme, e um prisioneiro estava pendurado, de cabeça para baixo, preso pelas pernas nas traves que separavam os dois andares. Ouvi-o gemer: ajuda-me, ajuda-me... Em agonia, não iria durar muito tempo naquela situação. Olhei à minha volta, mas as madeiras no chão, a maior parte delas partidas, eram demasiado curtas para chegarem ao homem, que só poderia ser salvo a partir do andar de cima. Vou procurar ajuda, gritei. Nesse momento, o chão recomeçou a tremer. À minha volta tudo abanou, produzindo o estrondo mais assustador e tenebroso que ouvira em dias da minha vida. Sobre mim, o edifício da prisão caía, como se fosse um baralho de cartas, cuspindo pedras e madeiras e poeiras, e deixando-me encolhido de medo». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT