Cortesia
de wikipedia e jdact
Da
Noite
[…]
Vem dos vales a voz. Do poço.
Dos penhascos. Vem funda e fria
Amolecida e terna, anémonas que
vi:
Corfu. No mar Egeu. Em Creta.
Vem revestida às vezes de
aspereza
Vem com brilhos de dor e
madrepérola
Mas ressoa cruel e abjecta
Se me proponho ouvir. Vem do
Nada.
Dos vínculos desfeitos. Vem do
Nada.
Dos vínculos desfeitos. Vem dos
ressentimentos.
E sibilante e lisa
Se
faz paixão, serpente, e nos habita.
Dirás que sonho o dementado sonho
de um poeta
Se digo que me vi em outras vidas
Entre claustros, pássaros, de
marfim uns barcos?
Dirás que sonho uma rainha persa
Se digo que me vi dolente e
inaudita
Entre amoras negras, nêsperas,
sempre-vivas?
Mas não. Alguém gritava: acorda,
acorda Vida.
E se te digo que estavas a meu
lado
E eloquente e amante e de palavras
ávido
Dirás que menti? Mas não. Alguém
gritava:
Palavras..., apenas sons e areia.
Acorda.
Acorda Vida.
Águas. Onde só os tigres mitigam
a sua sede.
Também eu em ti, feroz,
encantoada
Atravessei as cercaduras raras
E me fiz máscara, mulher e conjectura.
Águas que não bebi.
Crespusculares. Cavas.
Códigos que decifrei e onde me vi
mil vezes
Inconexa, parca. Ah, toma-me de
novo
Antíquissima, nova. Como se
fosses o tigre
A beber daquelas águas.
O que é a carne? O que é esse
Isso
Que recobre o osso
Este novelo liso e convulso
Esta desordem de prazer e atrito
Este caos de dor dobre o pastoso.
A carne. Não sei este Isso.
O que é o osso? Este viço luzente
Desejoso de envoltório e terra.
Luzidio rosto.
Ossos. Carne. Dois Issos sem
nome.
Dunas e cabras. E minha alma
voltada
Para o fosco profundo da Tua
Cara.
Passeio meu caminho de pedra,
leite e pêlo.
Sou isto: um alguém-nada que te
busca.
Um casco. Um cheiro. Esvazia-me
de perguntas.
De roteiro. Que eu apenas suba.
Costuro o infinito sobre o peito.
E no entanto sou água fugidia e
amarga.
e
sou crível e antiga como aquilo que vês:
Pedras, frontões no Todo
inamovível.
Terrena, me adivinho montanha
algumas vezes.
Recente, inumana, inexprimível
Costuro o infinito sobre o peito
Como aqueles que amam».
[…]
Hilda
Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte,
Literatura brasileira século XX, Wikipédia.
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