Amavisse
[…]
Se chegarem as gentes, diga que
vivo o meu avesso.
Que há um vivaz escarlate
Sobre o peito de antes palidez, e
linhos faiscantes
Sobre as magras ancas, e
inquietantes cardumes
Sobre os pés. Que a boca não se
vê, nem se ouve a palavra
Mas há fonemas sílabas sufixos
diagramas
Contornando o meu quarto de fundo
sem começo.
Que a mulher parecia adequada
numa noite de antes
E amanheceu como se vivesse sob
as águas. Crispada.
Flutissonante.
Diga-lhes principalmente
Que há um oco fulgente num todo
escancarado.
E um negrume de traço nas paredes
de cal
Onde a mulher-avesso se meteu.
Que
ela não está neste domingo à tarde, apropiada.
E que tomou algália
E
gritou às galinhas que falou com Deus.
As maçãs ao relento. Duas. E o
viscoso
Do Tempo sobre a boca e a hora.
As maçãs
Deixa-as para quem devora esta
agonia crua:
Meu instante de penumbra
salivosa.
As maçãs comi-as como quem
namora. Tocando
Longamente a pele nua. Depois
mordi a carne
De maçãs e sonhos: sua alvura
porosa.
E deitei-me como quem sabe o
Tempo e o vermelho:
Brevidade
de um passo no passeio.
Que as barcaças do Tempo me
devolvam
A primitiva urna de palavras.
Que me devolvam a ti e o teu
rosto
Como desde sempre o conheci:
pungente
Mas cintilando de vida, renovado
Como se o sol e o rosto
caminhassem
Porque vinha de um a luz do
outro.
Que
me devolvam a noite, o espaço
De me sentir tão vasta e
pertencida
Como se as águas e madeiras de
todas as barcaças
Se fizessem matéria rediviva,
adolescência e mito.
Que
eu te devolva a fome do meu primeiro grito.
[…]
Hilda
Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte,
Literatura brasileira século XX, Wikipédia.