Erótica
e Satírica
«Dão-nos um lírio e um canivete
E
uma alma para ir à escola
E um
letreiro que promete
Raízes,
hastes e corola.
Dão-nos
um mapa imaginário
Que
tem a forma de uma cidade
Mais
um relógio e calendário
Onde
não vem a nossa idade.
Dão-nos
a honra de manequim
Para
dar corda à nossa ausência
Dão-nos
o prémio de ser assim
Sem
pecado e sem inocência.
Dão-nos
um barco e um chapéu
Para
tirarmos o retrato.
Dão-nos
bilhetes para o céu
Levado
à cena num teatro.
Penteiam-nos
os crânios ermos
Com
as cabeleiras dos avós
Para
jamais nos parecermos
Connosco
quando estamos sós.
Dão-nos
um bolo que é a história
Da
nossa história sem enredo
E não
nos soa na memória
Outra
palavra para o medo.
Temos
fantasmas tão educados
Que
adormecemos no seu ombro
Sonos
vazios, despovoados
De
personagens do assombro.
Dão-nos
a capa do evangelho
E um
pacote de tabaco.
Dão-nos
um pente e um espelho
Para
pentearmos um macaco.
Dão-nos
um cravo preso à cabeça
E uma
cabeça presa à cintura
Para
que o corpo não pareça
A forma
da alma que o procura.
Dão-nos
um esquife feito de ferro
Com
embutidos de diamante
Para
organizar já o enterro
Do
nosso corpo mais adiante.
Dão-nos
um nome e um jornal,
Um
avião e um violino,
Mas
não nos dão o animal
Que
espeta os cor… no destino.
Dão-nos
marujos de papelão
Com
carimbo no passaporte.
Por
isso a nossa dimensão
Não
é a vida. Nem é a morte»
In
Natália Correia, Antologia de Poesia Portuguesa, Erótica
e Satírica, Dos Cancioneiros Medievais à Actualidade, 1965, 1966, 1999,
Herdeiros de Natália Correia, Cruzeiro Seixas, Ponto de Fuga, 2019, ISBN
978-989-888-115-1.