Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Primeiro vinha o som. Começava
como um ténue e distante sussurro no vento, quase imperceptível, depois ficava
cada vez mais alto, até se transformar numa explosão de cascos batendo, e
subitamente seis bois e seis touros apareciam. Cada um pesando cerca de
setecentos quilos, avançavam pela Calle
Santo Domingo como expressos mortíferos. Por dentro das
barricadas de madeira instaladas em cada esquina, para manter os touros
confinados a uma única rua, havia centenas de jovens ansiosos e nervosos,
decididos a provar sua bravura enfrentando os animais enfurecidos. Os touros
corriam da extremidade da rua, passavam pela Calle Laestrafeta e a Calle de Javier, passavam por farmácias e lojas de roupas,
pelo mercado de frutas, a caminho da Plaza
de Hemingway, e soavam gritos de olé da multidão frenética. Com a
chegada dos animais, começavam uma debandada desesperada para escapar aos
chifres afiados e cascos letais. A repentina realidade da morte se aproximando
fazia com que alguns participantes corressem para a segurança dos vãos de
portas e saídas de incêndio. Eram acompanhados por escárnios de cobardon. Os poucos que tropeçavam
e caíam no caminho dos touros eram logo puxados para um lugar seguro.
Um menino e o avô escondiam-se
atrás de uma barricada, ofegantes com a emoção do espectáculo que ocorria tão
perto dali. Olhe só para eles!, exclamou o velho. Magnífico! O menino
estremeceu. Tenho medo, avô. O velho passou o braço pelos seus ombros. Sim,
Manuelo. É assustador, mas também maravilhoso. Já corri com os touros uma vez.
Não há nada igual. V. testa a si mesmo contra a morte, e isso faz com que se
sinta um homem. Em geral, levava dois minutos para os animais galoparem pelos novecentos
metros da Calle Santo Domingo
até à arena; no momento em que os touros entravam no curral, um terceiro
rojão devia surgir no céu. Naquele dia o terceiro rojão não explodiu, pois
ocorreu um incidente que nunca antes acontecera nos quatrocentos anos de
história de touros de Pamplona. Enquanto os animais avançavam pela rua
estreita, meia dúzia de homens, vestidos nos trajes pitorescos da feria, mudaram as posições das barricadas.
Os touros foram obrigados a deixar a rua exclusiva e ficaram à solta no coração
da cidade. O que, um momento antes, fora uma comemoração feliz se transformou
no mesmo instante num pesadelo. Os animais frenéticos atacaram os espectadores
atordoados. O menino e o avó foram dos primeiros a morrer, derrubados e
pisoteados pelos touros. Violentas chicotadas atingiram um carrinho de bebê e
mataram a criança indefesa, derrubando a mãe com a cara esmagada. A morte
pairava no ar por toda a parte. Os animais colidiam com espectadores
desprotegidos, derrubando mulheres e crianças, enfiando os chifres compridos e
fatais nas pessoas, barracas de comida e estátuas, arrasando tudo o que tinha o
azar de se encontrar pela frente. Todos gritavam desesperados, na tentativa de
escapar do caminho dos animais enfurecidos.
Um furgão vermelho brilhante
apareceu à frente dos touros, que se viraram para atacá-lo, seguindo pela Calle de Estrella, a rua que
levava ao cárcel, a
prisão de Pamplona. O cárcel
é um prédio de pedra, de dois andares, janelas gradeadas, aparência
assustadora. Há guaritas nos quatro cantos, e a bandeira espanhola, vermelha e
amarela, trémula por cima da porta. Um portão se abre para um pequeno pátio. O
segundo andar do prédio consiste de celas, em que estão os presos condenados à
morte. No interior da prisão, um corpulento guarda, com um uniforme da Polícia
Armada, conduzia um sacerdote de hábito preto pelo corredor do segundo andar. O
guarda carregava uma metralhadora. Ao perceber a expressão inquisitiva nos
olhos do sacerdote à visão de arma, o guarda explicou: o cuidado nunca é demais
aqui, padre. Temos a escória da terra neste andar. O guarda pediu ao padre que
passasse por um detector de metal, muito parecido com os usados nos aeroportos.
Desculpe, padre, mas os regulamentos... Não tem problema, meu filho. No momento
em que o padre passou, uma sirene estridente irrompeu no corredor.
Instintivamente, o guarda contraiu a mão que empunhava a metralhadora. O padre
virou-se e sorriu para o guarda, murmurando: a culpa é minha. Removeu uma
pesada cruz de metal que pendia do pescoço numa corrente de prata e entregou-a
ao guarda. Quando tornou a passar, o detector permaneceu em silêncio. O guarda devolveu
a cruz e os dois continuaram a jornada pelas profundezas da prisão. O mau
cheiro no corredor, perto das celas, era opressivo. O guarda estava com um
ânimo filosófico.
Está perdendo o seu tempo aqui,
padre. Estes animais não têm almas para serem salvas. Ainda assim, meu filho,
devemos tentar. O guarda sacudiu a cabeça. Posso garantir-lhe que os portões do
inferno estão à espera para escolher os dois. O padre olhou surpreso para o
guarda. Dois? Fui informado que havia três que precisavam de confissão. O guarda
encolheu os ombros. Poupamos um pouco do seu tempo. Zamora morreu na enfermaria
essa manhã. Ingrato. Eles alcançaram as celas mais distantes. Chegámos, padre. O
guarda destrancou a porta de uma cela, depois recuou, cauteloso, enquanto o
padre entrava. Tornou a trancar a cela e ficou parado no corredor, alerta a
qualquer sinal de problema. O padre aproximou-se do vulto no imundo catre da
prisão. Seu nome, meu filho? Ricardo Mellado». In Sidney Sheldon, As Areias do
Tempo, 1989, Publicações
Europa-América, 2003, ISBN 978-972-105-176-8.
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