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Quero falar com o seu superior, ordenou o mais velho, sem delongas, um olhar
altivo de quem sabe o poder que tem cada palavra saída da sua boca. O ordenança
foi chamar o nosso bem conhecido oficial, que instalou os dois visitantes no
seu gabinete. Sou o marquês Godofredo Santa Maria. Muito prazer. Compreende que
não cumprimente o marquês, mas o senhor Godofredo. Seja. Não vim aqui falar de
política. Folgo em sabe-lo. Com isto do serviço militar obrigatório tocou ao
meu filho Godofredo ter de servir as forcas armadas. Pagarei o que for necessário
para que arranje um substituto que ocupe o lugar do meu filho.
Lamento, mas a Lei do Recrutamento já não prevê essa pratica. O
governo aboliu a lei da substituição, pelo que o Godofredo II vai ter de servir
a pátria. Décimo oitavo. Desculpe? Ele será o Godofredo décimo oitavo e não o
Segundo. Sou o décimo sétimo marquês Santa Maria. Pois. Seja como for, segundo
ou décimo oitavo, cá o esperarei para ingressar nos quadros do exército e
servir ao Presidente da República. Deus me livre, soltou o Godofredo mais
velho, enquanto o jovem estava lívido. Decerto a lei prevê excepções. Decerto
prevê. Cidadão deficiente ou delinquente está dispensado do serviço militar,
mas não vislumbro qualquer sinal de deficiência ou delinquência. Posso sempre
mandá-lo para o estrangeiro. Pode. E o senhor será o Último marquês de Santa
Maria. Ainda que, como sabe, isso não valha nada de nada. Pertence ao passado. A
Monarquia nunca será aniquilada neste país, esta República pode durar dez,
vinte, cem anos. Haverá sempre alguém pronto para se sentar no trono. Mas não é
o local nem a hora para falarmos sobre isso. O que quero saber é se pode fazer
algo pelo meu filho. Poderei. Pode? Pode livrá-lo do exército? Poderei. Mas não
é assunto para tratar aqui, nem agora.
Deixo-lhe a minha morada. Passe por lá para jantar, quiçá,
amanhã ou nalgum dia desta semana. Amanhã está bom. Muito bem. Até amanhã.
Saberei agradecer-lhe. Conforme combinado o coronel apresentou-se na morada do
marquês, no dia seguinte, um solar perto do Porto, muito bem cuidado, com
escadaria dupla a embocar na grande porta pintada de verde, por onde o coronel
adentrou e foi conduzido por um mordomo até um enorme salão de convívio onde
não se encontrava vivalma, pelo menos assim parecia, num primeiro relance.
Assim que se viu largado pelo mordomo tratou de se familiarizar com o lugar, as
paredes pejadas de pinturas e tapeçarias com motivos monárquicos, ao fundo, um
quadro grandioso de um cavaleiro, dentro de uma armadura, segurando um elmo
numa das mãos. Acercou-se a ver de quem se tratava, mas não havia nenhuma placa
a identificar o retrato, talvez não passasse apenas de uma pintura monárquica
sem mais história.
Dom Godofredo, primeiro marquês de Santa Maria, pronunciou uma
voz feminina por trás dele. Claro. Como é que ele não pensara nisso, era lógico.
Os outros dezasseis estão no corredor, se quiser ir ver. Obrigado. É uma
pintura enorme. Tudo nesta casa é enorme. O coronel não se podia conter, a
pulcritude que emanava daquela jovem mulher regalava-lhe os olhos e
apertava-lhe o coração num sufoco de espanto. Os cabelos viçosos da cor de fogo
e tudo nela era um hino à beleza, uma deusa na terra, ali diante dele». In
Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN
972-731-176-8.
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