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de wikipedia e jdact
Vê
melhor, quem vê por último
«(…)
Hoje em dia, tem-se mais fé em venenos, vírus e formas distintas de
esterilização; noutras palavras, na guerra química e biológica. Mas não se
compõe uma nova cadeia trófica num abrir e fechar de olhos, e até se pode
perguntar se isso é factível. Por outro lado, é triste verificar como é fácil
acabar com o equilíbrio ecológico construído pela natureza durante muitos
milhões de anos. Mas a insensatez do
mundo não tem mais limites nem fronteiras. Penso nessa arrogante insensatez dos
sabichões, uma espécie de miopia do engenho, tão maravilhosamente subdesenvolvida
entre aborígines, maoris e melanésios, antes de eles se transformarem em
apêndices do homem branco. Penso na insensatez da cobiça e do lucro. Hoje em
dia se empregam eufemismos como globalização e acordos comerciais. Isso implica
que a comida já não se define como alimento, e sim como mercadoria. Onde
outrora as pessoas podiam comer o que colhiam nos seus campos, hoje se cultivam
cada vez mais produtos inúteis, a que somente os países mais ricos do mundo
podem ter acesso. Não vivemos mais da natureza. Foi-se o tempo dos paraísos.
De
resto, V conhece de sobra o meu velho interesse pelos répteis. Foi um fascínio
pueril pela vida neste planeta há cem ou duzentos milhões de anos que me tornou
biólogo, e isso muito antes da moda dos dinossauros, que surgiu por volta de
dez ou quinze anos atrás. Eu queria compreender por que todos esses répteis
altamente especializados se extinguiram de repente. Além disso, obcecava-me uma
pergunta que desde então nunca me saiu da cabeça: o que teria acontecido se os dinossauros
não se tivessem extinguido? O que teria acontecido nesse caso com todos esses
mamíferos parecidos com os musaranhos, dos quais V e eu descendemos? Mas
sobretudo: o que teria acontecido com os dinossauros? Na Oceânia, tive a
oportunidade de estudar várias espécies antigas de répteis. Muito especial foi
o arcaico tuatara, encontrado nalgumas ilhas isoladas da Nova Zelândia. Embora arriscando-me
a ofendê-la um pouco, atrevo-me a confessar
que experimentei um sentimento quase religioso ao contemplar um dos vertebrados
vivos mais antigos se desenvolver nos restos dos velhos bosques do antigo
continente da Gonduana. Esses répteis de idade avançada vivem em tocas
subterrâneas, muitas vezes compartilhadas com algum petrel. Podem medir até
setenta centímetros de comprimento, têm uma temperatura corporal singularmente
baixa, nove graus, e podem viver mais de cem anos. Quando V o vê de noite, é
como se retrocedesse ao Jurássico, na época em que a Laurásia se separou da
Gonduana, e os grandes dinossauros mal haviam começado a se desenvolver. Era
então que os rincocéfalos se distinguiam das outras famílias de sáurios como
uma família de répteis pouco numerosa, mas sumamente resistente. O seu único
representante vivo, o tuatara, conservou-se espectacularmente inalterado por
cerca de duzentos milhões de anos.
Preciso tomar fôlego, Vera. O tuatara não é um facto menos notável
do que se, de repente, alguém encontrasse um arqueópterix vivo numa dessas
ilhas isoladas. É certo que algo parecido ocorreu no Leste da África do Sul, no
dia 22 de Dezembro de 1938, quando um barco pesqueiro pegou nas suas redes um
crossopterígio, o chamado latimeriídeo. O grupo de peixes com aletas em forma
de ramalhete, tão importante para a evolução, simplesmente porque deles
descendemos, V e eu, e todos os outros vertebrados terrestres, só estava
documentado por achados fósseis até ao Natal de 1938, e se acreditava que havia
se extinguido fazia quase cem milhões de anos. Tanto o peixe azul como o tuatara
merecem a denominação de fósseis vivos, e eu talvez deva acrescentar um por
enquanto. Não faz muitos anos, o
tuatara se espalhava por amplas zonas da Nova Zelândia». In Jostein
Gaarder, Maya, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 2001, ISBN
978-972-232-737-4
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