terça-feira, 3 de setembro de 2019

A Bicicleta que Fugiu dos Alemães. Domingos Amaral. «Carol escutou passos apressados, a descer as escadas. Alguém assustado? Também podia ser fome. Na Residencial de Saint-Sulpice, a essa hora a cozinha encontrava-se fechada…»

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Paris, 3 de Junho de 1940
«A bicicleta que fugiu dos alemães era urna Hirondelle e pertencia à minha prima Carol, que nela pedalava, feliz, pelas ruas de Paris, onde estudou até àquela fatídica noite de Junho de 1940, em que todos os diabos do mundo se soltaram. Montada na Hirondelle, rumava às aulas na Sorbonne, circulava pelos boulevards e regressava à Residencial de Saint-Sulpice, perto dos Jardins do Luxemburgo, onde alugara um quarto. Jack, em Paris eu voava na Hirondelle, garantiu-me Carol tempos depois, acrescentando que aquela bicicleta, apesar de em segunda mão, era já uma componente essencial da sua identidade e não se imaginava sem ela. Por isso, quando teve de fugir da guerra, não a deixou para trás e foi nela que atravessou a França e chegou a Portugal.
Embora indesejada, esta vibrante aventura começou à vigésima terceira hora do dia 3 de Junho, quando o ribombar longínquo das primeiras bombas alemãs a acordou. Agitada, levantou-se, abriu a janela e viu os clarões alaranjados das explosões, recordando-se imediatamente da profecia fatídica de Madre Mary, a superiora do Saint-Sulpice, que nessa mesma tarde proclamara: esta noite vão cair bombas em Paris. Aí estavam elas, a sacudir a terra, algures em Noisy-le-Sec, nos arredores da Cidade-Luz, contrariando as previsões da maioria dos parisienses, ainda convencidos de que o exército francês não seria derrotado. Só uma minoria esclarecida, onde se incluía a Madre, sabia perfeitamente que Rommel entrara pelas Ardenas como faca quente em manteiga. Os jornais chamavam-lhe guerra-relâmpago, em alemão blitzkrieg, uma palavra agora sempre omnipresente nas conversas, qual bordão enervante que substituía o sempre negado terror dos franceses.
Carol escutou passos apressados, a descer as escadas. Alguém assustado? Também podia ser fome. Na Residencial de Saint-Sulpice, a essa hora a cozinha encontrava-se fechada, mas Madre Mary ordenara que na copa houvesse sempre pão, água, bolachas e um cesto de fruta, entre as dez da noite e as seis da manhã, que era a hora em que as noviças inauguravam a lide diária. A minha prima levantou-se, vestiu o roupão e saiu para o corredor. Quem por ali passara só podia ser mulher, pois não eram admitidos homens naquela hospedaria. Destinada a estudantes permanentes ou viajantes ocasionais, ficava junto ao convento e à igreja com o mesmo nome, famosa pelas suas torres desiguais. Os três edifícios debruçavam-se sobre um largo pátio comum, cujo portão abria para uma pequena rua, transversal ao Boulevard Saint-Germain. Quando, já em Lisboa, recordou estes acontecimentos, Carol contou-me que vivera ali desde que fora estudar para Paris, em Setembro de 1938. Na primeira semana, tinha dormido em casa de uma portuguesa, mas rapidamente percebera que estava demasiado longe da Sorbonne. Sara, sua amiga e colega de turma, sugerira então a Residencial de Saint-Sulpice, que parecera perfeita a Carol, não tanto pelo quarto, pequeno e austero, e muito menos pelo colchão, de palha e duro, mas por duas outras razões. Primeiro, podia ir a pedalar para a universidade e a rotina que mais amava era guiar a Hirondelle, uma bicicleta com nome de pássaro em cima da qual se sentia livre e plena. Segundo, porque gostara instintivamente de Madre Mary, uma senhora amável e serena, o oposto das madres superioras frias e desagradáveis a que a literatura anticlerical do século XX tantas vezes recorria.
Portanto, sentia-se em casa e não teve receio de avançar na penumbra e descer as escadas para o rés-do-chão, onde, a caminho da copa, foi surpreendida por um chamamento imperativo. Carrô!» In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.

Cortesia CdasLetras/JDACT