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de wikipedia e jdact
Poesia
e Segredo
Drummond
meditativo
«Para
todos nós, Carlos Drummond de Andrade é a figura emblemática da poesia moderna no
Brasil. Não creio que Manuel Bandeira seja, como muitos creem, um poeta menor e
inferior a Drummond, mas Bandeira é o grande poeta da passagem para a
modernidade, enquanto Drummond é o poeta central da experiência moderna
brasileira. Ao considerar este facto, dei com o seguinte ponto que me pareceu
fundamental: tudo na obra desse poeta não acontece senão por conflito. Realmente,
tudo é conflito em Drummond. E conflito desde o começo da sua carreira. Ele
experimentou contradições e dificuldades desde o início para forjar o denso
lirismo meditativo que o caracteriza. Quando consideramos os seus grandes
poemas, logo, nos damos conta do atrito dos elementos contraditórios e da
densidade reflexiva de sua lírica. Até a figura humana do poeta, a sua atitude
característica, parece estar associada a essa densidade da reflexão: o ser e o
dizer ensimesmado. É raro que uma foto sua escape ao ar pensativo com que nos
habituamos a vê-lo.
E desde o princípio estamos
diante desse traço decisivo do estilo ou do modo de ser da obra: a exigência de
uma mediação reflexiva para se chegar à poesia. Um caminho atravessado por
dificuldades. Se compararmos com Manuel Bandeira, de imediato se notará a diferença:
Bandeira dá a impressão da mais fluente naturalidade. O próprio Drummond chamou
a nossa atenção, porém, para a fábrica altamente engenhosa de Bandeira, como
está dito em seus Passeios na ilha,
percebendo com precisão o quanto havia de cuidadosa construção naquela aparente
espontaneidade. A primeira impressão que nos dá Bandeira é a do poeta ingénuo,
na acepção que Friedrich Schiller empregou o termo no seu ensaio de fins do século
XVIII: Poesia ingênua e sentimental.
Ingénuo seria o poeta que procede instintivamente, conforme a natureza, enquanto
sentimental, este seria o caso de Drummond, seria o poeta reflexivo, ou antes, o
poeta que tendo se perdido da natureza busca, por meio da reflexão,
restabelecer a sensibilidade ingénua.
Com efeito, para Drummond a
naturalidade parece constituir um problema, e a poesia, o objecto de uma
procura dificultosa. Assim, a questão fundamental é essa poesia travada pela dificuldade
que parece ser a sina drummondiana. Procura da poesia é não apenas um dos melhores
poemas de A rosa do povo,
mas o traçado do esforço que caracteriza a sua aproximação ao poético. E basta
lembrar outros poemas na mesma direção, como Consideração do poema, Oficina
irritada ou O lutador, para sentir o peso dessa dificuldade e quanto a mediação
do esforço reflexivo é uma exigência íntima para o poeta. Se dermos alguma
folga aos conceitos de Schiller, Drummond será o nosso poeta moderno e sentimental.
No caso de Bandeira, a criação poética
mostra-se como natureza prolongada, e a crença na inspiração, na súbita
manifestação do poético que constitui para ele o alumbramento, confirma o modo de ser ingénuo. No entanto,
sabemos que o alumbramento bandeiriano, essa linda palavra parece trazer
consigo, pela trama dos sons, ecos simbolistas, entremeando luz à sombra e
levando a iluminação a confundir-se com o mistério, é uma noção complexa. Exige
do poeta uma atitude de apaixonada escuta e só se dá quando ela, poesia, quer,
mas também não basta para concretizar em palavras a inspiração, uma vez que
esta depende também dos pequeninos nadas da linguagem, que podem estropiar um
verso ou uma imagem. Um poema pode ser, então, o resultado de um esforço
construtivo de anos a fio: Bandeira gostava de lembrar a história de sua
sofrida estatuazinha de gesso, renitente ao lacre verbal com que buscava encerrá-la
num verso. E assim o Itinerário de
Pasárgada é o caminho difícil da aproximação à poesia e a
história da aprendizagem do ofício de poeta enquanto artista da palavra.
Bandeira, que acreditava na importância da inspiração até para atravessar uma
rua, não tinha, porém, nada de ingénuo.
O caso de Drummond, no entanto, é
mais complicado. A sua concepção do poético exige a reflexão como mediação
necessária para o encontro da poesia. Ora, essa modalidade de pensamento que é
a reflexão tem uma origem romântica. Os pré-românticos alemães é que desenvolveram
esse tipo de pensamento reflexivo, que nasce como uma fantasia do Eu sobre o Eu,
como uma forma de pensar sobre o pensar. É um pensar sem fim que lembra o
sonho, mediante o qual fundaram as suas principais concepções». In
Davi Arrigucci Jr., O Guardador de Segredos, 2010, Companhia das Letras, 2010,
ISBN 978 853-591-655-3.
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