Cortesia de wikipedia e jdact
«(…) Compreenda-me: pertencemos a
uma terra em que a vivacidade faz as vezes do talento e onde a destreza ocupa o
lugar da capacidade criadora, e creio com frequência que não passamos de facto
de débeis mentais habilidosos consertando os fusíveis da alma à custa de
expedientes de arame. Inclusive o estar aqui consigo talvez não passe de um
expediente de arame que me salve da maré baixa de desespero que me ameaça,
desespero de que não conheço a causa, percebe, e que à noite me enrola no visco
do seu lodo, me afoga de aflição e de receio, me molha o beiço de cima de um
bigode de suor, me faz tremer os joelhos um contra o outro em castanholas de
dentadura postiça de porteiro adormecido. Não, a sério, o crepúsculo chega e o
coração acelera-se, palpo-o no pulso, as vísceras comprimem-se, a vesícula dói-me,
os ouvidos zumbem, qualquer coisa de indefinível e prestes a romper-se palpita,
tenso, no meu peito: um dia destes, o porteiro dá comigo estendido nu no chão
da casa de banho, um fio de pasta de dentes e de sangue ao canto da boca, as
pupilas subitamente enorme contemplando nada, a cheirar mal, sem cor, inchado
de gases. Você lê no jornal, não acredita, volta a ler, verifica o nome, a
profissão, a idade, e passadas duas horas esqueceu-se e virá aqui, como de
costume, ancorar o seu silêncio numa enseada de copos, tilintar em cada mínimo
gesto as pulseiras indianas que recordam uma Londres mítica perdida no nevoeiro
do passado, na época em que Bod Dylan falava e as pernas das vendedoras do Selfridges eram quase tão
atraentes como os sorrisos dos polícias.
Outro vodka? É verdade que não acabei o meu mas neste passo da minha narrativa
perturbo-me invariavelmente, que quer, foi há seis anos e perturbo-me ainda: descíamos
do Luso para as Terras do Fim do Mundo, em coluna, por picadas de areia, Lacusse,
Luanguinga, as companhias independentes que protegiam a construção da estrada,
o deserto uniforme e feio do Leste, quimbos cercados de arame farpado em torno
dos pré-fabricados dos quartéis, o silêncio de cemitério dos refeitórios,
casernas de zinco a apodrecer devagar, descíamos para as Terras do Fim do
Mundo, a dois mil quilómetros de Luanda, Janeiro acabava, chovia, e íamos
morrer, íamos morrer e chovia, chovia, sentado na cabina da camioneta, ao lado
do condutor, de boné nos olhos, o vibrar de um cigarro infinito na mão, iniciei
a dolorosa aprendizagem da agonia.
Gago
Coutinho, a trezentos quilómetros ao sul do Luso e junto à fronteira com a
Zâmbia, era um mamilo de terra vermelha poeirenta entre duas chanas podres, um
quartel, quimbos chefiados por sobas que o Governo Português obrigava a
fantasias carnavalescas de estrelas e fitas ridículas, o posto da PIDE, a
administração, o café do Mete Lenha e a aldeia dos leprosos; uma vez por semana
eu sacudia o badalo do sino de capela pendurado no meio de um círculo de
cubatas aparentemente desertas, no silêncio carregado de ruído que África tem
quando se cala, e dezenas de larvas informes principiavam a surgir,
manquejando, arrastando-se, trotando, dos arbustos, das árvores das palhotas,
dos contornos indecisos das sombras, larvas de Bosch de todas as idades em
cujos ombros se agitavam, como penas, franjas de farrapos, avançando para mim à
maneira dos sapos monstruosos dos pesadelos das crianças, a estenderem os cotos
ulcerados para os frascos de remédio. O senhor Jonatão, o enfermeiro negro da
delegação de saúde nominal, que corria constantemente como os chineses do Tim-Tim, distribuía as pastilhas na majestade macabra de um ritual
eucarístico para desenterrados vivos, alguns dos quais, já cegos, voltavam para
ninguém as órbitas desabitadas, reduzidas a uma névoa azul-húmida de muco
repugnante. Miúdos sem dedos, afligidos de moscas, agrupavam-se numa pinha muda
de espanto, mulheres de feições de gárgula segredavam-se diálogos que os céus
da boca em ruína tornavam numa pasta de gemidos, e eu pensava na ressurreição
da carne do catecismo, como pedaços de tripas e erguerem-se dos buracos dos
cemitérios num despertar vagaroso de ofídeos. Um pouco, percebe, como se toda esta
gente pálida que cochicha curvada em atitudes de feto, enrolando-se mutuamente
em torno das nucas os tentáculos sem ossos dos braços, saísse de roldão a porta
do bar, não para a noite domesticada e cúmplice da Lapa, feita do ressonar
conjunto de bassets e
de condessas, mas para um dia excessivo iluminado pelo sol vertical das salas
de operação dos ringues de boxe, que revelasse sem piedade as olheiras, as
rugas, as pregas de cansaço, a murchidão dos seios, as expressões vazias que
nenhum cognac mobila. O senhor Jonatão, regiamente
instalado numa cadeira desconjuntada, absolvia de tintura de iodo as feridas
que lhe ofereciam pincelando-as de extremas-unções expeditivas, inúteis
esconjuros contra a presença da morte, e eu circulava ao acaso de quimbo em quimbo
assustando velhas esqueléticas acocoradas à entrada das palhotas, e de que as
saias, demasiado largas para as suas ancas de ícones, se assemelhavam às mangas
de papel que embrulham as palhinhas de refresco. E havia o cheiro de
decomposição de mandioca a secar nas esteiras, a humidade, que se farejava no
ar, da chuva que crescia, excrementos secos como os cagal… de cartão do Entrudo, ratos obesos
remexendo o lixo, a chana horizontal ao longe atravessada por um rio sinuoso e
estreito como uma veia da mão, e os morcegos a aguardarem o crepúsculo nos
vestígios de templo de Diana de uma casa de colono, afogada no capim sem cor do
esquecimento». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora
Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.
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