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Gago Coutinho era também o café do Mete Lenha, branco
sopinha de massa cujo esforço para falar o torcia de caretas de defecação,
casado com uma espécie de botija de gascidla enfeitada de colares
estridentes, sempre a queixar-se aos oficiais dos beliscões com que os soldados
lhe homenageavam as nádegas atlânticas, difíceis, aliás, de discernir numa
mulher aparentada a um imenso glúteo rolando em que mesmo as bochechas possuíam
qualquer coisa de anal e o nariz se aparentava a inchaço incómodo de hemorróida, café para refrescos inocentes nas tão compridas tarde de
domingo, e onde pela primeira vez o tenente, confidencial, abriu a carteira
para me mostrar a fotografia da criada, e revelou, recostando-se para trás no
assento de ferro por demais exíguo para as duas omoplatas enormes, o produto
sintético das meditações de uma vida: sopeira em que o patrão não se ponha nunca
chega a criar amor à casa. No edifício sinistro do hospital civil, idêntico a
uma pensão de província moribunda de paredes empoladas por furúnculos de humidade,
os doentes de paludismo estremeciam de febre nos degraus da entrada, no
corredor, na sala de consulta, no
cubículo destinado às injeções, à espera das ampolas de quinino na
tranquilidade imemorial dos negros, para quem o tempo, a distância e a vida
possuem uma profundeza e um significado impossíveis de explicar a quem nasceu
entre túmulos de infantas e despertadores de folha, aguilhoado por datas de
batalhas, mosteiros e relógios de ponto. Diante da secretária, espessa como um bunker,
à qual instalava a minha ciência de manual, a miséria e a fome desfilavam manhã
fora na serenidade monótona da chuva de Setembro, e a única resposta que a
minha impotência me permitia eram as pastilhas de vitamina da tropa adoçadas
por um sorriso de desculpa e de vergonha.
Impedidos de pescar e de caçar, sem lavras, prisioneiros do
arame farpado e das esmolas de peixe seco da administração, espiados pela PIDE,
tiranizados pelos cipaios, os luchazes fugiam para a mata, onde o MPLA, inimigo
invisível, se escondia, obrigando-nos a uma alucinante guerra de fantasmas. A
cada ferido de emboscada ou de mina a mesma pergunta aflita me ocorria, a mim,
filho da Mocidade Portuguesa, das Novidades e do Debate, sobrinho de catequistas e íntimo da Sagrada Família
que nos visitava a domicílio numa redoma de vidro, empurrado para aquele
espanto de pólvora numa imensa surpresa: sãos os guerrilheiros ou Lisboa que
nos assassinam, Lisboa, os Americanos, os Russos, os Chineses, o car… da pu…
que os pariu combinados para no fod… os cornos em nome de interesses que me escapam, quem me enfiou
sem aviso neste cu de Judas de pó vermelho e de areia, a jogar às damas com o
capitão idoso saído de sargento que cheirava a menopausa de escriturário resignado
e sofria do azedume crónico da colite, quem me decifra o absurdo disto, as
cartas que recebo e me falam de um mundo que a lonjura tornou estrangeiro e
irreal, os calendários que risco de cruzes a contar os dias que me separam do
regresso e apenas achando à minha frente um túnel infindável de meses, um
escuro túnel de meses onde me precipito mugindo, boi ferido que não entende,
que não entende, que não logra entender e acaba por enterrar o triste focinho
molhado nos ossos de frango com esparguete do rancho, do mesmo modo, percebe,
que aqui, na sua companhia, me sinto cavalo de narinas enfiadas na alcofa de vodka,
mastigando o feno azedo do limão.
A
seguir ao jantar os jeeps dos
oficiais giravam de palhota em palhota hesitações de pirilampos: o amor barato
e rápido em compartimentos abafados, aclarados por pavios indecisos de petróleo
que coloriam as paredes de barro de uma ilusão de capelas. Chegava-se de bisnaga antivenérea no bolso e aplicava-se a pomada
através da braguilha aberta à maneira de uma vulva de pano, sob o olhar
indiferente de mulheres de dentes serrados em triângulo, acocoradas na cama no
alheamento de perfil de certos retratos de Picasso, em cuja curva dos lábios
flutuam Guernicas desdenhosas.
No mesmo colchão dormiam, em regra, os filhos, as galinhas e algum
antepassado decrépito perdido em pesadelos de múmia, rosnando os hieróglifos
dos seus sonhos. O tenente
fornicava de pala do boné para trás e pistola à cinta, com o impedido de
espingarda em riste a vigiar as redondezas, o oficial de operações mandou vir
uma máquina de costura do Luso
e cozia bainhas de calça de madrugada ao lado de uma negra esplêndida, de
enérgicos seios pendentes como os da loba de Roma, e o capitão das damas, instalado ao volante, pedia à
raparigas impúberes que o masturbassem, oferecendo em troca cartuchinhos de
rebuçados de hortelã-pimenta: o branco chegou com um chicote, cantava o milícia
na viola, o branco chegou com um chicote e bateu no soba e no povo, o branco
chegou com um chicote e bateu no soba e no povo». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora
Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.
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