Cortesia
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…
destas cidades restarão o vento que as atravessa… In Bertolt Brecht
Parma.
1248
«(…)
Um só castiçal de dois bocais estava pousado no centro da mesa. À luz das velas,
os dourados arabescos pintados sobre o pergaminho brilhavam: Guidotto dal Canale
aflorou-os com as pontas dos dedos e aquele contacto áspero lhe proporcionou um
arrepio ao longo do dorso. Levantou-se, fechou o livro, prendendo as páginas
com as tiras de linho que pendiam da costura, e, com grande cautela,
recolocou-o na sacola de couro. Enquanto se aproximava do cofre onde o
esconderia, começou a reflectir sobre a viagem que o esperava. Partiria para
Milão, onde o seu primo Ghiberto tinha os conhecimentos certos para aconselhá-lo
quanto à venda daqueles pergaminhos. Não havendo saído nunca da cidade,
certamente o ajudaria a escolher a pessoa mais adequada a quem oferecer a
compra, ao passo que ele, bloqueado havia mais de um ano ali em Parma por
aquele maldito cerco, corria o risco de cometer erros de avaliação. O facto de
ter estado por tanto tempo ausente da praça de Milão iria impedi-lo de sopesar
com a devida prudência os efeitos produzidos na sua clientela habitual pelas
recentes mudanças ocorridas na gestão da comuna. Ele sabia que muitos aristocratas,
expulsos da cidade, haviam-se refugiado nas suas propriedades rurais e que
outros, acusados de tomar o partido do imperador, tinham sido até mortos.
Dizia-se também que algumas famílias,
desde sempre gibelinas, por puro cálculo político tinham preferido aderir à facção
oposta. O que ele sabia quanto a quem tinha trocado de bandeira? E se,
incautamente, propusesse o manuscrito de Frederico justamente a nobres guelfos?
Com toda a probabilidade, em poucas horas penderia de uma forca erguida sobre
uma carroça em praça pública... Não, devia pedir a orientação de Ghiberto, não
havia dúvida. Depois o recompensaria lautamente pelos serviços, dando-lhe um quinto
da soma recebida do comprador. O dinheiro pago ao armeiro não era nada diante
do que ele esperava obter com a venda do manuscrito. Embora aquele campónio
ignorante, mais do que satisfeito com o saquinho de moedas que havia recebido,
tivesse prometido manter silêncio sobre a história do furto, parecia-lhe melhor
apressar a partida. A excitação que percorria a cidade após o saque do acampamento
não garantiria nenhuma discrição. Os cidadãos, que haviam conseguido roubar até
a coroa imperial e a tinham levado à catedral como um troféu, não faziam outra
coisa além de beber e farrear nas estalagens. E se depois de uma carraspana o
armeiro saísse contando haver roubado o livro do imperador e tê-lo entregado
justamente a ele? Estava perdendo tempo, não era hora de ruminar pensamentos. Às
pressas, repôs a sacola de couro no cofre, fechou-o e guardou a chave na
escarcela que trazia pendurada no cinto. Partiria ao alvorecer do dia seguinte.
Novembro
de 1248. Acampamento Imperial
... portanto, esta é a minha
ordem. Exijo que seja cumprida com a máxima urgência. Se, para recuperar o
manuscrito, for necessária a violência, não hesite em usá-la, mas saiba desde já
que tudo o que fizer deverá permanecer secreto. Certamente não preciso
sugerir-lhe os métodos com os quais deve levar a termo esta operação. Como
sempre, o senhor tem minha confiança incondicional. O favor que me prestará,
devolvendo-me a posse do tratado, será recompensado adequadamente, em dinheiro
e benefícios.
Frederico releu a carta e, depois
de acrescentar-lhe a sua assinatura e o sinete imperial, confiou-a ao secretário,
que aguardava do lado oposto da tenda. Este despacho tem de partir imediatamente,
ordenou. Ezzelino deve recebê-lo dentro de uma semana. O homem assentiu e
desapareceu lá fora. Frederico voltou à escrivaninha e sentou-se. Apesar da
beberagem preparada pelo médico da corte, a dor nos rins ainda o atormentava. Esticou
as pernas, tentando dar alívio aos músculos da coluna. Entrelaçou os dedos e
começou a reflectir. Fora uma sorte que Ezzelino tivesse participado com ele da
reconquista de Parma, porque os seus métodos expeditos haviam desatado a língua
de muitas pessoas. Uma delas apontou o armeiro como o autor do furto do
manuscrito: o homem foi posto imediatamente sob tortura. Aquele idiota, que
ainda esperava salvar a vida, contou tudo, sem ocultar sequer o nome do negociante
de arte a quem o entregara, um certo Guidotto dal Canale». In Valeria Montaldi, O
Manuscrito do Imperador, 2008, Grupo Editorial Record, 2011, ISBN
978-850-108-703-4.
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