sexta-feira, 11 de outubro de 2019

A Biblioteca Desaparecida. Luciano Canfora. «Esses doutos foram os únicos, num certo período da história da biblioteca, a usufruir da visão deslumbrante, que viria a ser o sonho de escritores fantásticos, dos livros de todo o mundo»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Biblioteca Universal
«(…) Dá também a entender que era aquele Aristeu autor de um livro chamado Quem são os judeus, então em circulação, totalmente baseado, assegura ele, em informações de sacerdotes egípcios, exactamente como o excurso das Histórias do Egipto de Hecateu de Abdera. E, enfim, também tenta dessa maneira, mas aqui é realmente difícil dar-lhe crédito, fazer-se passar por um gentio. Em casos do género, como se sabe, é difícil avaliar se as expressões que falam em colaboracionismo são exageradas e injustas ou se, pelo contrário, contêm uma parcela de verdade. Evidentemente, se se raciocinasse pelo critério, que a alguns parece útil, dos resultados obtidos, teríamos de dizer que a iniciativa então amadurecida foi, para os judeus, das mais favoráveis. Mas também não se pode ocultar a vantagem que os dominadores acabavam tendo, por conhecerem melhor os seus súditos. Ao dizer que também os livros da lei hebraica mereciam ser traduzidos para o grego, Demétrio estava implicitamente afirmando que este não era o primeiro trabalho do género que se faria na biblioteca. De cada povo, informa um tratadista bizantino, recrutaram-se doutos que, além do domínio sobre a sua língua, conheciam profundamente o grego; a cada grupo foram confiados os respectivos textos, e assim preparou-se uma tradução grega de tudo. A tradução dos textos persas atribuídos a Zoroastro, com mais de 2 milhões de versos, era lembrada, mesmo séculos depois, como um empreendimento memorável. Na época de Calímaco, que compilava os catálogos dos autores gregos divididos por armários, Hermipo, seu aluno, pensou em imitá-lo, e talvez intimamente quisesse superá-lo, preparando os índices desses 2 milhões de versos, diante dos quais as poucas dezenas de milhares de hexémetros da Ilíada e da Odisséia pareciam minúsculos breviários. Esses doutos foram os únicos, num certo período da história da biblioteca, a usufruir da visão deslumbrante, que viria a ser o sonho de escritores fantásticos, dos livros de todo o mundo.
Ânsia de totalidade e vontade de domínio, não diversas do impulso que, segundo as palavras de um antigo retórico, levava Alexandre a tentar ultrapassar os confins do mundo. E também se dizia que ele pretendera uma biblioteca de dimensões imponentes em Nínive, para a qual mandara preparar traduções dos textos caldeus. Portanto, o objectivo almejado pelos Ptolomeus e executado pelos seus bibliotecários não era apenas a aquisição dos livros do mundo inteiro, mas também a sua tradução para o grego. Naturalmente, podiam ser reelaborações e compêndios em grego, como, por exemplo, as Histórias egípcias de Maneton, um sacerdote oriundo de Sebenito (uma região do Delta) e actuante em Heliópolis. Maneton reelaborou dezenas e dezenas de fontes, rolos conservados nos templos, listas de soberanos e suas proezas, tal como fizera Megástenes, embaixador do rei Seleuco da Síria na corte indiana de Pataliputra, com tantas fontes indianas. Com as armas dos macedónios, em poucos anos os gregos tornaram-se a casta dominante em todo o mundo conhecido: da Sicília à África do Norte, da península balcânica à Ásia Menor, do Irão à Índia e ao Afeganistão, onde se detivera Alexandre. Os gregos não aprenderam a língua dos seus novos súbditos, mas compreenderam que, para dominá-los, era preciso entendê-los, e que para entendê-los era necessário traduzir e reunir os seus livros. Assim nasceram bibliotecas reais em todas as capitais helénicas: não apenas como factor de prestígio, mas também como instrumento de dominação. Nessa obra sistemática de tradução e aquisição, coube um lugar de destaque aos livros sagrados dos povos dominados, por ser a religião, para quem pretendia governá-los, como que a porta de suas almas.

Deixo os livros para Neleu
Quando morreu Teofrasto, num ano entre 288 e 284 a.C., descobriu-se no seu testamento uma cláusula bastante estranha: deixo todos os livros para Neleu. Aos outros alunos deixava como herança o jardim e a alameda coberta, e os edifícios próximos ao jardim. (Isso lhe era possível graças a Demétrio, que, como senhor de Atenas, conseguira que Teofrasto, mesmo não sendo cidadão ateniense, entrasse finalmente em posse do terreno onde se situava a escola). Os livros, pelo contrário, destinavam-se apenas a Neleu. Porque esse privilégio, e que livros eram? Neleu, natural da cidadezinha asiática de Scepsi, na Tróade, então era provavelmente o último aluno vivo de Aristóteles». In Luciano Canfora, A Biblioteca Desaparecida, Histórias da Biblioteca de Alexandria, 1986, Companhia das Letras, 1989,ISBN 978-857-164-051-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT