Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Afora isso, só me ocorrem imagens dispersas daquele tempo: meu pai sentado no trono,
com olhar carrancudo, um engenhoso cavalinho de brinquedo do qual eu gostava
muito, minha mãe na praia contemplando o Egeu. Nessa última lembrança, estou
atirando seixos à superfície da água, plaf, plaf, plaf. Ela parece gostar
do modo como as ondas se encrespam e em seguida desaparecem. Ou talvez goste do
próprio mar. Na sua têmpora, vê-se uma mancha em forma de estrela, branca como
marfim, a cicatriz da época em que seu pai a golpeou com o punho da espada.
Seus pés vão deixando pegadas na areia, e procuro não desfazê-las enquanto
apanho pedras. Escolho uma e atiro-a, contente por saber fazer isso muito bem. É
a única lembrança que conservo da minha mãe e é tão bela que quase tenho
certeza de tê-la forjado. Afinal, é pouco provável que meu pai nos permitisse ficar
juntos a sós, o filho imbecil e a esposa palerma. E onde teria sido? Não reconheço
a praia, o litoral. Muita coisa aconteceu desde então.
Fui chamado pelo rei. Lembro-me
de ter odiado aquilo, a longa caminhada até à sala do trono. Ao chegar lá,
ajoelhei-me no chão de pedra. Alguns reis costumavam mandar estender tapetes
diante do trono para os mensageiros que ali precisavam ficar muito tempo
transmitindo as suas notícias. Meu pai não. A filha do rei Tíndaro finalmente
está pronta para o casamento, anunciou ele. Eu conhecia aquele nome. Tíndaro
era rei de Esparta e possuía vastas extensões de terra fértil no sul, do tipo
que meu pai cobiçava. Ouvira falar também da filha, considerada a mulher mais
bela das redondezas. Sua mãe, Leda, teria sido possuída por Zeus, o rei dos
deuses em pessoa, disfarçado de cisne. Nove meses depois, saíram do seu ventre
dois pares de gémeos: Clitemnestra e Castor, filhos do marido mortal; e Helena
e Polideuces, os cisnezinhos divinos. Mas bem se sabe que os deuses são pais
avarentos; Tíndaro devia garantir o património de todos.
Não respondi à notícia do meu
pai. Aquilo não tinha nenhum significado para mim. Meu pai limpou a garganta e
rompeu o silêncio da sala: faremos bem em tê-la na família. Você partirá e se
apresentará como pretendente. Não havia mais ninguém por ali e só ele ouviu o meu
murmúrio de surpresa. Porém eu não era tão tolo a ponto de dar mostras de
descontentamento. Meu pai sabia o que eu poderia dizer: que só tinha 9 anos,
que era feio, sem futuro, indiferente. Partimos na manhã seguinte, os alforjes
repletos de presentes e provisões para a jornada. Soldados nas suas melhores
armaduras nos escoltavam. Não me lembro de muita coisa da viagem, foi por
terra, atravessando paisagens que não me deixaram nenhuma impressão. À frente
da comitiva, meu pai ia ditando novas ordens aos secretários e mensageiros, que
disparavam em todas as direcções. Baixei os olhos para as rédeas de couro de
minha montaria, que eu alisava com o polegar. Não entendia bem o que estava
fazendo ali. Era uma situação incompreensível, como quase todas as que meu pai
provocava. Meu burro balançava e eu balançava com ele, contente por ter pelo
menos aquela distracção. Não fomos os primeiros pretendentes a chegar à
cidadela de Tíndaro. Os estábulos já estavam cheios de cavalos e mulas, com
servos correndo de um lugar para outro. Meu pai não parecia nada contente com a
recepção: surpreendi-o, de cenho franzido, esfregando a mão na pedra da lareira
do nosso quarto. Eu levara de casa o meu cavalinho de brinquedo, cujas pernas
se moviam. Levantei uma pata, depois outra, imaginando que viajara montado nele
e não no burro. Um soldado se compadeceu de mim e emprestou-me os seus dados.
Fiquei jogando-os ao chão até que apresentaram todos, num só lance, a face de
seis». In Madeline Miller, A Canção de Aquiles, 2011 / 2012, Editora Jangada,
2015, ISBN-978-856-485-037-8.
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