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Estrella
«(…)
Tendes razão, Senhor, respondera o duque de Aveiro. Desonra e deslustre. Mas a
vergonha não chega para esconder a covardia. Abespinhara-se Sebastião. Vinha ao
de cima a conhecida sanha. Puxando do punhal que Cristóvão Távora trazia à
cinta: como te atreves, vilão?, rouquejou. Chamas-me covarde? Deveríeis ter
morrido a combater respondia-lhe sem medo o duque, ter pejo de estares vivo.
Assim, acrescentais a uma grande tragédia, outra não menor. Guardai esse
punhal. Também o meu sangue, o do rei João segundo, me ferve de vergonha. Também
eu deveria lá ter ficado no campo de batalha. Fui covarde para vos salvar. Vede
lá agora se não sou vário... Com as lágrimas a brotarem-lhe dos olhos,
Sebastião, abatido, estendeu o punhal a Cristóvão Távora e abraçou-se ao duque de
Aveiro desfeito em soluços.
O
arcebispo e o cónego ouviam-no num silêncio contristado. O peregrino continuou:
dir-se-ia que me custava mais o vexame da derrota que a perda do trono. Mas o
pior estava para chegar. Virei-me para os meus companheiros: senhores, poderei
por uma derradeira vez ordenar-vos... Não. A minha autoridade real morreu
naquele areal africano. Poderei pedir-vos, rogar-vos... Beijavam-me as mãos,
ajoelhavam-se-me aos pés, misturando-se as lágrimas por aquelas barbas com o
sangue das feridas trazidas da batalha, protestando, as palavras embargadas nas
goelas. Disse-lhes que não queria mais aparecer, fosse cada um a seu destino,
eu seguiria incógnito por aí, pelo mundo..., mas nunca revelassem que era vivo.
Cristóvão Távora falou por todos: para onde eu fosse, eles iriam também,
disfarçados em trajos comuns, reuniriam dinheiro e correriam mundo à procura de
uma morte honrosa a combater o Turco ou a penitenciarem-se dos pecados na Terra
Santa..., mas primeiro era necessário curarem aquelas feridas demasiado
acusadoras de donde vinham... A vossa perna, Alteza... Pchiu! Nada de Altezas
nem de vós. Daí em diante tratar-se-iam por tu e nunca pronunciariam os nomes
verdadeiros... ... inchada e feia...
Começa
a ficar gangrenada. É urgente tratá-la. Poderíamos sair em terra no cabo de São
Vicente. Há aí um convento de capuchos. Poderão acudir-nos nos primeiros
cuidados... O São Mateus pairou ao largo do cabo e, num escaler, remaram para terra.
O bote atracou na estreita língua de rebos, à sombra da arriba alcantilada, que
causava vertigens só de olhar para cima onde o céu se aclarava na manhã
nascente. Fernão Álvares, o mestre da capitaina, fitou o rei e apontou-lhe a
perna que parecia um cepo: não podereis... O rei fez-lhe um sinal e ele
emendou: não poderás andar..., ia a dizer Alteza, mas conteve-se: ... e muito
menos subir esta fraga... E quem o poderá?, perguntou Jorge, olhando as rochas
talhadas a pique. Tens razão. Impossível, se eu não estivesse aqui. Quando a maré
enchesse, o mar engolir-vos-ia. Mas poucos sabem o que eu sei. Vinde comigo. Eu
levo Sua..., eu levo Sebastião às costas. Vinde. Seguiram pelos rebos e, diante
de uma brecha da fraga, Fernão Álvares disse: por aqui e começou a subir, com o
rei aos ombros, por uma escada tosca ferida a picão na rocha. Cuidado!, dizia
aos outros.
Quando
chegaram a cima, o sol começava a erguer-se. Descansaram um pouco na relva,
junto à fortaleza de São Vicente. O rei disse: tenho vindo a pensar. Tu podes
chamar-te Jorge, tu Luís, tu João, tu Cristóvão, tu Telo e tu Fernão..., mas eu
não mais me poderei chamar Sebastião. Ouvi um dia uma mulher do povo chamar-me
Savachão. Assim me chamareis daqui por diante. Acolhemo-nos à fortaleza?,
perguntou Luís. Melhor será, atalhou Fernão, acolherdes-vos ao convento dos capuchos
que daqui se avista. São mais discretos. Vamos e ia a tomar outra vez o rei às
costas, disse-lhe este: não. Tu tens de voltar quanto antes ao galeão. Eu
arrimo-me no braço de Jorge. Vai e obrigado. Fernão Álvares olhou o rei: posso
dar-te um abraço? Abraçaram-se. Vai, amigo. Não te esquecerei. O mestre
aproximou-se do abismo. O rei acenou-lhe adeus: boca selada, fez-lhe sinal.
Daí
a pouco viram-no remar em direcção ao galeão e, virando costas, caminharam para
o conventinho dos capuchos. Passados alguns dias o grupo saía do convento.
Savachão trazia a cabeça empanada e, debaixo do braço esquerdo, uma muleta que o
ajudava na impossibilidade de pousar a perna ferida no chão. Os outros também
vinham pensados: Luís com um braço ao peito, João com o peito e o pescoço
enfaixados, Jorge e Cristóvão com as marcas de curativos pelo corpo. Só Telo se
encontrava incólume. Lindo grupo é o nosso, disse o rei. Não podemos caminhar assim
todos juntos. As pessoas começariam a murmurar, a desconfiar. Sim, concordou
Jorge. É melhor separarmo-nos por algum tempo. Proponho que aqueles que têm
mais possibilidade de rápida e secretamente arranjar dinheiro, eu, o Luís, o
João, sigamos cada um seu caminho. Cristóvão à Arrábida, à Caparica, a
Guimarães, com o mesmo propósito. Telo acompanhe Sua..., acompanhe Savachão...
João
certamente, disse Cristóvão, tomará o caminho da Guarda..., ... para mais
perto, para Góis... ... Luís o da serra de Ossa... Por lá passarei. ... tu,
Jorge, o de Setúbal, o da Arrábida, como eu. Irei contigo. Faremos companhia um
ao outro. E quando nos tornaremos a reunir? Antes de sairmos do reino,
esclareceu Savachão, desejo fazer por ele peregrinação. Quero ver com as chagas
da alma o mal que lhe fiz. Então quando? Concertai com Telo a maneira de cada
um de nós se conservar sempre em comunicação comigo e..., estamos em Agosto...,
lá para o fim do ano reunir-nos-emos algures e sairemos talvez pelo Norte,
caminho de Santiago..., e que Deus nos proteja...» In Fernando Campos, A Ponte dos
Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.
Cortesia
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