quarta-feira, 20 de novembro de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Recolhia em frascos todos os perfumes do mundo e depois subia ao alto da serra mais alta e, desarrolhando aqui, tapando ali, como se faz com os registos dos órgãos das catedrais, iria deixando os perfumes evolar-se…»

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A Letra Pitagórica
«(…) Que bem saberia agora aquele pichel de bom vinho que nos serviu frei Gaspar!, recordo eu. Que Deus tenha em sua glória!, emenda Diogo piedosamente com a boca cheia. Recosto-me na relva, de papo para o ar, e não demora muito que o sono tome conta de mim. Diogo, por caridade, não me acorda e, às tantas, faz o mesmo. Quando acordei ainda ele ressona. Ponho-me a cantar: eu venho da macelada venho de colher macela. É daquelas cantigas de que os meus ouvidos de menino estão cheios e que eu aprendi não sabia onde. Então coisa curiosa se passa comigo. É nos olhos que eu sinto o perfume da macela e ouço os pássaros a trinar, a chilrear, a gorjear! Os meus sentidos estão todos baralhados! Certamente ainda não estou completamente acordado! A cor de um campo de papoulas, que se avista na outra margem do ribeiro, entra aos berros, a baloiçar, pelos ouvidos dentro, o sabor de um naco de presunto sinto-o no olfato, apalpo as formas boleadas e aveludadas do perfume das estevas e as pontas aguçadas e agrestes do cheiro forte da arruda. Todo eu, sou sentidos, tresloucados! Transmito a Diogo, que acaba de acordar, os meus pensamentos, as minhas sensações. Ele escuta pacientemente aquilo a que chama as minhas trenguices, mas às vezes acha graça e ri-se. Creio que entrevê pela primeira vez um mundo que sozinho nunca sonharia existir. Deitado de costas, com as pernas dobradas, deixo o olhar perder-se lá em cima, por entre as folhas de um olmeiro, no céu azul.
Apanho um trevo amarelo e ponho-me a chupar-lhe o caule acre, enquanto falo com Diogo. As vezes vinha-me à ideia compor um hino só com perfumes... Que tal achava o amigo?... Ah! Se eu tivesse uma oficina de perfumaria!... Recolhia em frascos todos os perfumes do mundo e depois subia ao alto da serra mais alta e, desarrolhando aqui, tapando ali, como se faz com os registos dos órgãos das catedrais, iria deixando os perfumes evolar-se numa imensa sinfonia de tons e meios tons, numa polifonia de fusas e colcheias, sustenidos e bemóis numa hábil combinação de todas as figuras do gregoriano, a gradação do climacus, o alongar do porrectus, o volteado do torculus, volutas de incensos que iriam subindo, chegando ao Céu!...
De repente desato a cantar:

Megálio e cânfora da índia cinamomo e benjoim
louvai ao Senhor!
Malábatro da Pérsia mélino, cíprino
louvai ao Senhor!
Açafrão da Assíria e da Caldeia sândalo e aloés
louvai ao Senhor!

Aonde fora eu aprender aquilo?, alertado Diogo soergue-se apoiado nos cotovelos. Sem responder, continuo:

Rosas de Babilónia reseda, lírio
louvai ao Senhor!
Musgo e âmbar da Arábia mirto e cálamo
louvai ao Senhor!

A partir daqui, Diogo, rendido, passa a recitar o refrão do terceiro verso, após eu cantar a antífona dos dois primeiros:

Resinas de Sídon e Tiro incenso e mirra
louvai ao Senhor! Ónix odorífero da judeia gálbano, estoraque
louvai ao Senhor!
Cífea do Egipto psagda, metópio
louvai ao Senhor!

Numa bouça próxima melros faziam o acompanhamento com as suas flautas e o pisco-ferreiro tinia ferrinhos.

Manjerona de Chipre mirostáfilo, bácaris
louvai ao Senhor!
Alforva da Hélade Panatenaico unguento
louvai ao Senhor!
Bálsamo de Cartago olor de mel e alcaria
louvai ao Senhor!
Briónia e ródino de Itália verbena, acácia
louvai ao Senhor!
Sandáraca da Gália exalações de lis
louvai ao Senhor!
Cravos de Espanha almíscar, espicanardo
louvai ao Senhor!

Suspendo o canto, de propósito, a espevitar Diogo. E nós?, pergunta ele. Não queres tu acabar?, desafio. Que não conhecia desses perfumes raros, como eu!, lamenta-se». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT