«(…) O que vos quero dizer, porque o descobri, é que o mundo dos vossos
mortos está alterado, estão inquietos e celebram assembleias e todo o tipo de
reuniões, mas ignoro ainda por que motivos e com que fim. Há dois meses que venho
escutando as tumbas dos vossos antepassados, tanto os sepulcros novos das catedrais
como os velhos e vazios do destruído Mosteiro de Santo Mauro e posso
assegurar-vos que, na sua inquietação de mortos sérios, se remexem que, através
do silêncio e da distância, se falam, há vozes que se ouvem como colóquios
remotos e não se pode entender o que dizem, de tão distantes, de tão fundo. As
vozes dos mortos pressagiam alterações e prodígios, são como os rumores da
terra que precedem o terramoto, segundo dizem, eu nunca os vi nem os ouvi.
Sereníssima Alteza, sonhei que a Torre de Menagem caía e recobrava em
seguida o seu aprumo e sonhei que um barco se afundava e emergia meia milha
mais adiante, sem que parecesse ter-se afogado ninguém da tripulação, sem que
os guardas da Torre tenham sofrido qualquer dano. São avisos, senhor, estes
sonhos, não sei se do Inferno, isso não está esclarecido. Sereníssima Alteza,
isto não é tudo, é só o princípio. O mundo da Verdade dormia. Agora, de
repente, desperta e estes são alguns sintomas. Porque será, senhor? Os avisos
que meu avô revelou ao vosso precederam a chegada de Napoleão. Que anunciam
agora as vozes, as sacudidelas, os alvoroços dos mortos? Espero que, daqui a
algum tempo, ambos cheguemos a sabê-lo. Vesti a horrorosa sobrecasaca cor de
tabaco para assistir no domingo aos ofícios: de bom grado lhe teria
acrescentado um cartaz nas costas no qual, com letras bem visíveis, teria
escrito:
Para mim não é segredo, meu amigo.
O que vai acontecer é que o meu primo me vai derrubar do trono, nem
mais, nem menos.
Não seria decoroso, ainda que conveniente. Quanto à sobrecasaca,
vesti-a, contudo, porque, assim, o misterioso informador ia-me mantendo a par
de todos os prodígios que via por sua conta e deixava-me tempo livre para as
minhas vulgaridades. Admirável servidor, espelho de súbditos leais e de
videntes! Foi pena a sua insistência no anonimato. Foi assim que fiquei a
saber, quando ainda era grão-duque, das cavalgadas nocturnas dos meus mortos.
Agora que estou destronado, vejo os que regressam do mar. E falarei deles.
Será conveniente que apresente, também, ao comandante dos meus
exércitos, o meu amigo Fritz, barão de Cronstadt por concessão do czar Pedro I
a um antepassado seu. Não sei qual dos meus avós autorizou a família dele a
usar o título no meu país. Em sociedade, chamavam-lhe Cronstadt; no quartel,
comandante; no meu palácio, simplesmente, Fritz». In Gonzalo Torrent, La Rosa de
los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel,
Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.
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